Por Veronica Slobodian
Post original aqui.
Ilustração: Joana Ho
A Academia tem o costume de se achar diferente do restante dos agrupamentos humanos. Os acadêmicos se consideram gozar de um alto grau de questionamento, de maneira que não sucumbiriam às crendices populares e quaisquer tipos de argumentos que não sejam respaldados somente em fatos, dados empíricos, experimentos regulados.
Entretanto, o ambiente acadêmico apresenta crendices populares, como qualquer outro agrupamento humano. Inclusive crendices com personagens dignos de criptozoologia ou folclore, com espécies lendárias, mitológicas e hipotéticas, as quais teriam sido avistadas por diversos acadêmicos ao longo de suas carreiras. Personagens como a “mulher não gosta de exatas”, a “mulher não tem aptidão para determinado campo científico”, a “mulher não serve para assumir posição de liderança”, dentre outros tantos.
Essas são figuras folclóricas do ambiente acadêmico as quais estão arraigadas há tanto tempo no imaginário popular de seus membros, que muitos juram terem visto tais espécimes, argumentam até ter registros concretos de suas existências, e acabam passando os contos referentes a esses personagens através das gerações. Mas é isso que elas são: figuras folclóricas. E cada vez mais temos dados empíricos para argumentar este posicionamento.
Na Ictiologia não era diferente. O ser mitológico mais famoso da ictiologia era a “mulher não gosta de trabalhar com peixes”. Os argumentos do folclore para a existência de tal personagem eram geralmente referentes ao “fato” de que a maioria das pessoas que decide trabalhar com peixes tem esta vontade derivada de terem pescado muito quando crianças. Esse ser mitológico também foi aventado como uma condição madura da espécie “menina não gosta de pescar”, afinal, pescaria é algo que os pais fazem com seus filhos. Que pai leva sua filha para pescar, não é mesmo? “Meninas não gostam de lago, grama ou peixes". Argumentam que por termos menos meninas pescadoras, seria natural termos menos mulheres trabalhando com peixes e, portanto, menos mulheres sendo convidadas a palestrar em congressos de peixes.
De maneira a sairmos do ambiente folclórico, e trabalharmos com dados concretos (afinal, cientista gosta de dados, não é mesmo?), iniciamos uma pesquisa sobre o perfil de gênero na ictiologia. Há um grande desbalanço de gênero na ictiologia brasileira? Se sim, quais fatores podem levar a tal?
O estopim para tal pesquisa foi observar que nos últimos congressos ictiológicos brasileiros o número de palestrantes mulheres era muito inferior ao de homens, compreendendo de 21–32% (em média 25,8%) na última década. E para tal fato muitas hipóteses foram traçadas ao longo do tempo, que pudessem explicar e justificar tais números.
Claro, se o ser mitológico de “mulher não gosta de trabalhar com peixes” realmente existisse, e devesse ser descrito pela ciência, provavelmente a porcentagem de mulheres na Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI) deveria ser semelhante à de mulheres palestrantes. Para a surpresa de muitos, encontramos que as mulheres compreendem 40% da SBI.
Então aventamos que provavelmente o ser mitológico não era necessariamente a “mulher não gosta de trabalhar com peixes”, mas “mulher não gosta de trabalhar com sistemática e taxonomia de peixes”, de maneira que há muito menos mulheres formadas na área que homens. Para tal, levantamos os dados de mestrados e doutorados em sistemática e taxonomia de peixes nos últimos anos, e obtivemos que as mulheres são 43% de tais formações.
Posteriormente, a dúvida que surgiu é se o ser mitológico não seria “mulher publica menos, por isso é menos convidada a palestrar”. E num levantamento de 2003–2017 na revista Neotropical Ichthyology encontramos que as mulheres são primeiras autoras em 39% dos artigos, em média.
Dessa forma, acabamos por executar algumas lendas do folclore acadêmico: “mulher não gosta de trabalhar com peixes”, “mulher não gosta de trabalhar com sistemática e taxonomia de peixes” e “mulher publica menos, por isso é menos convidada a palestrar”. Entretanto, matar as lendas não as tira do imaginário popular. E, muito menos, explica como elas vieram a existir.
Talvez essa seja uma pergunta que nunca será respondida propriamente, ao menos não ao rigor que nós, acadêmicos e acadêmicas, gostaríamos que tivesse. Portanto, nossa intenção com tal trabalho não foi apenas de matar as lendas, mas de despertar a conscientização sobre o assunto da desigualdade de gênero na participação e representatividade das mulheres na ictiologia brasileira. Admitimos que tal desigualdade existe e ela é fruto de seres mitológicos que, apesar de muito arraigados na crendice popular, não têm dados empíricos para justificar sua descrição formal. Ao admitirmos, podemos pensar então em estratégias para enterrar propriamente esses personagens, e dar lugar às personagens reais, às mulheres fortes e grandes cientistas que compõem a ictiologia brasileira.
Sobre a autora:
Veronica Slobodian é coordenadora do projeto de levantamento da participação e representatividade de mulheres na ictiologia brasileira. Entretanto, todo o trabalho citado foi feito e/ou corroborado por mais de 50 pesquisadoras, de todo o Brasil, que assinam o projeto em andamento.
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