Por Alice Reis (colaborou: Raquel Saraiva)
Como descartar uma embarcação de 71 metros de comprimento e 19 metros de altura? Essas eram as dimensões do ferry boat Agenor Gordilho, que fazia a travessia Salvador - Ilha de Itaparica, na Bahia. No último dia 21, o ferry e o rebocador Vega foram afundados na Baía de Todos os Santos (BTS), a 1,5 km da costa de Salvador (BA). Ambos tinham 45 anos de uso e iam virar sucata, mas foram submergidos a 36 m de profundidade para serem transformados em possível morada para corais e para a criação de um parque de mergulho submarino em ambiente urbano. Segundo as reportagens veiculadas, normas internacionais e da marinha do Brasil foram seguidas para que não houvesse impacto e poluição referente a essa ação. Mas será mesmo que esse processo não oferece riscos?
Segundo o governo estadual, foram feitos estudos prévios de localização e de impactos ambientais, com remoção de óleos e combustíveis, além de “peças que oferecessem riscos aos futuros mergulhadores”. Entretanto, nenhum estudo foi disponibilizado! Como não existe regramento administrativo no órgão ambiental da Bahia para licenciar esse tipo de atividade, o processo ocorreu dentro da Secretaria de Administração do Estado (SAEB) junto com a Secretaria de Turismo (Setur). Os estudos ambientais foram enviados para análise ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema). Pesquisadores preocupados entraram em contato com o órgão solicitando os dados sobre o afundamento e não obtiveram resposta. Tampouco foi apresentado algum plano de monitoramento da colonização nas embarcações afundadas e entorno (fundo arenoso, muros, marinas e outros naufrágios). Nem plano de monitoramento das atividades econômicas, sociais e educacionais atreladas ao investimento. A falta de transparência sobre estudos emitiram um sinal de alerta para os pesquisadores da região, que antecipam uma série de impactos ambientais associados ao afundamento de navios e criação de recifes artificiais.
O ferry boat com 45 anos de uso foi afundado propositalmente na Baía de Todos os Santos. Foto: Camila Souza/GOVBA - CC BY-ND 3.0 BR.
A principal preocupação dos pesquisadores é com a bioinvasão. A Baía de Todos os Santos já lida com dois corais invasores, o coral sol e o coral azul, além de outras espécies exóticas. A preocupação é que o navio seja colonizado pelos corais invasores (que naturalmente colonizam mais rápido que os nativos) e o recife artificial sirva de fonte de coral invasor para outros recifes naturais, acelerando o impacto do bioinvasor sobre as espécies nativas. Outro problema é que os recifes artificiais podem atrair os organismos móveis (principalmente peixes) dos recifes naturais (isso é, para que os recifes artificiais fiquem ricos e abundantes, os recifes naturais locais podem perder biodiversidade e pode haver um desequilíbrio ecológico).
Além disso, peixes grandes como os meros, que estão ameaçados de extinção, devem ser atraídos para os navios e se tornarão alvo fácil da pesca subaquática. No entanto, nada foi pontuado sobre regras de pesca e fiscalização nos navios afundados e a pesca ilegal de peixes ameaçados de extinção são um problema a ser considerado. O tema deveria ter sido debatido em audiências públicas amplamente divulgadas, inclusive no meio acadêmico, principalmente por se tratar de um tipo de empreendimento que não tem regramento e que os órgãos competentes não têm protocolos para avaliar.
A dimensão do impacto também é preocupante. Segundo Fausto Franco, secretário de turismo da Bahia, “quando a ponte entre Salvador e Itaparica ficar pronta, todos os outros ferry boats que hoje fazem a travessia também serão afundados na baía, porque não terão mais serventia”. Esse posicionamento claramente expressa um interesse do Estado em se livrar do problema, que é destinar apropriadamente a sucata dos ferrys e de outras embarcações. No entanto, ignora-se todo o passivo ambiental relacionado ao afundamento dos navios.
E quem realmente ganha com isso? Quem vai se beneficiar de um turismo de mergulho submarino que exige equipamento e equipe especializada? Só para termos noção, um simples batismo de mergulho entre 15 e 60 minutos custa entre 100 e 300 reais. Para mergulhar em ferry naufragado, o mergulhador precisará não apenas de um batismo ou curso básico de mergulho, mas de um curso avançado, por causa da profundidade em que se encontra. Logo, se trata de um turismo de elite. Por outro lado, hoje na BTS existem aproximadamente quase 18 naufrágios históricos estudados, aqueles que não foram afundados intencionalmente e que carregam consigo a história não só da Bahia, mas do Brasil. Logo ao lado do Farol da Barra, na área do Parque Marinho, há dois naufrágios, sendo um deles acessível até para o mergulhador de snorkel que chega a nado a partir da praia. Outros pontos na cidade de Salvador também têm naufrágios acessíveis que não recebem a gestão devida.
Seria esperado então, que sendo rica em naufrágios históricos e havendo interesse em chamar atenção para o turismo submarino na BTS, o Município, a Secretaria de Turismo e o Governo do Estado, estimulassem a manutenção desses naufrágios e da biodiversidade local, minimizando os impactos já existentes. Por exemplo, fiscalizando lançamentos de âncoras nos naufrágios, criando projetos de educação ambiental para limitar a retirada de pedaços como “lembrança” e investindo no saneamento básico e educação para limitar a poluição marinha.
A postura atual tanto com os naufrágios históricos, quanto com os possíveis impactos ambientais causados pelo afundamento de navios, para criação de recifes artificiais, mostra que não há interesse em preservar o patrimônio cultural nem a biodiversidade. No entanto, são estes dois últimos os verdadeiros responsáveis por estimular o turismo na nossa região e, portanto, deveria ser interesse de todos preservá-los. Como disse o professor da Universidade Federal da Bahia, Ronan de Brito “O que é preciso na Baía de Todos os Santos é um grande Projeto Metropolitano, corajoso, que considere todos esses aspectos da cultura e do ambiente e que reanime a economia regional sem a inconsequência de apostar no turismo de elite como única solução salvadora.”
Referências
Brito, R. R. C. de. 2001. A gestão da Baía de Todos os Santos. Bahia Análise & Dados 11:98–100.
Giglio, V. J., J. Adelir-Alves, L. C. Gerhardinger, F. C. Grecco, F. A. Daros, and Á. A.
Bertoncini. 2014. Habitat use and abundance of goliath grouper Epinephelus itajara in Brazil: A participative survey. Neotropical Ichthyology 12:803–810.
Torres, Rodrigo. Projeto Observabaía – Linha de Pesquisa sobre Patrimônio Cultural Subaquático da Baía de Todos os Santos. Relatório Parcial (Junho 2015 a Abril 2016). Observabaía – Observatório de Riscos e Vulnerabilidades da Baía de Todos os Santos. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2016.
Simon, T., J. C. Joyeux, and H. T. Pinheiro. 2013. Fish assemblages on shipwrecks and natural rocky reefs strongly differ in trophic structure. Marine Environmental Research 90:55–65.
Sobre a autora:
Alice é doutoranda no programa de Ecologia: Teoria, Aplicação e Valores da Universidade Federal da Bahia e formou-se mestre em Ecologia e Biomonitoramento pela mesma instituição, quando estudou o papel de marismas tropicais como refúgio para caranguejos chama-maré. Desde a graduação, Alice é apaixonada por oceanografia, e logo se vinculou ao Laboratório de Ecologia Bentônica (LEB), onde vem exercendo atividades de pesquisa relacionadas à interação entre organismos bentônicos e ecologia de ambientes estuarinos.
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