Por Carla Elliff
Ilustração por Joana Ho.
A poluição por lixo no mar (principalmente plástico) está em toda parte. Relatos de lixo sendo ingerido por tartarugas, mamíferos e aves têm se tornado cada vez mais comuns. Também já sabemos que além das nossas praias, encontramos lixo em grandes profundidades no oceano. Por isso, o tema tem sido discutido amplamente, sendo incluído também em políticas públicas que buscam entender e amenizar o problema.
Mas um compartimento ambiental ainda pouco explorado quando o assunto é lixo no mar, é o geológico.
Sim, geologia. Aquela que estuda o “palco” sobre o qual toda a vida no planeta se desenvolve. Esse arcabouço também é afetado pela nossa poluição, mesmo sendo não vivo (abiótico).
Para ilustrar como, trago o exemplo das antropoquinas: rochas sedimentares recentes com cimentação natural de itens de origem humana. Antes de chegar nelas, deixa eu contar sobre os bastidores dessa descoberta…
Exemplo de antropoquina coletada no litoral gaúcho. Essa amostra consiste em uma tampinha de metal com grãos e uma concha de bivalve cimentados de forma natural. (Foto por Gerson Fernandino com licença CC BY 4.0).
Em 2018, eu e meu marido, Gerson Fernandino, passamos alguns meses na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Eu como doutoranda, cursando algumas disciplinas lá como aluna especial, ele como professor substituto. Foram 4 meses de inverno no melhor estilo Cassino! Vento, umidade e frio de renguear cusco!
Mas também foram 4 meses junto a pessoas incríveis, que nos acolheram como velhos amigos. Entre essas pessoas estavam os professores Paula Dentzien-Dias e Heitor Francischini. Ambos paleontólogos, grudamos neles logo no início, fascinados pelo trabalho que desenvolvem. Aprendemos, por exemplo, que o Rio Grande do Sul é riquíssimo em fósseis da megafauna do Pleistoceno. Essa época geológica corresponde a cerca de 11 mil anos antes do presente e a megafauna é representada por mamíferos como mastodontes (parecidos com mamutes), gliptodontes (mamíferos extintos que parecem tatus gigantes) e preguiças-gigantes. Nem só de dinossauros vive a paleonto!
Parte do trabalho da Paula e do Heitor consiste em ir até certos pontos no extremo sul do litoral gaúcho – ou seja, no finzinho do Brasil (ou seria o começo?) – e procurar esses fósseis. As condições de vento e maré têm que estar propícias para garantir uma boa coleta. Então, ficando de olho na previsão do tempo, chegamos a uma semana ideal. Eu e Gerson rapidamente nos voluntariamos para ajudar!
Fomos até a Praia do Hermenegildo e depois nos Concheiros do Albardão, munidos de caixas para amostras e, claro, casaco corta-vento. Passamos o dia praticamente (ou às vezes literalmente) jogados de bruços na praia separando o que era material recente e o que eram fósseis, muitos só restando seus fragmentos.
Coletando fósseis na Praia do Hermenegildo e Concheiros do Albardão. Muitos dos fósseis são pequenos fragmentos, então fica mais fácil se deitar na areia para encontrá-los! Às vezes uma peça maior é coletada, como essa garra de preguiça-gigante. (Fotos por Carla Elliff com licença CC BY 4.0).
Além dos fósseis, outro item geologicamente interessante da região são as coquinas.
Coquinas são rochas sedimentares formadas majoritariamente por fragmentos de conchas. Elas são bastante comuns na região e preservam muita história com cada um dos bioclastos (fragmentos de origem biológica que formam uma rocha) que as compõem.
Amostra de coquina ao lado de uma caneta, usada como escala. (Foto por Carla Elliff com licença CC BY 4.0).
Bom, realizado nosso sonho de sermos paleontólogos por um dia, continuamos a frequentar o laboratório durante nossa estada na FURG.
Sabendo do nosso trabalho com poluição por plástico, um dia Paula e Heitor dizem “Ah! Temos uma amostra que vocês vão gostar”. Eis que eles nos trazem algo que só tínhamos imaginado que poderia ocorrer: rochas sedimentares que, além dos usuais grãos de areia e bioclastos, continham também itens de metal e plástico cimentados naturalmente em sua composição. Essas amostras haviam sido coletadas em trabalhos de campo anteriores no litoral, guardadas mais por serem curiosas do que qualquer outro interesse.
Eu lembro da cara do Gerson analisando a amostra, como se Papai Noel tivesse trazido o brinquedo que ele pediu! Desde seu mestrado ele teorizava como o plástico poderia futuramente fazer parte do ciclo das rochas, considerando que ele está em toda parte, inclusive como fragmentos entre os grãos de areia. Alguns estudos já reportaram o que se chama de plastiglomerados, piroplástico e plasticrostas. Todos são exemplos de interações de plástico com o compartimento geológico (e descritos apenas no hemisfério norte até o momento), mas nenhum resultante de processos naturais de diagênese (o conjunto de processos que leva sedimentos à sua consolidação na forma de rochas). O que tínhamos em mãos era um lixo bem valioso.
Apelidamos as amostras de “antropoquinas”, em homenagem às numerosas coquinas encontradas na região, adicionando o sufixo antropo- para representar a contribuição humana naquela rocha. O nome pegou e, assim, reportamos a ocorrência curiosa no artigo Anthropoquinas: First description of plastics and other man-made materials in recently formed coastal sedimentary rocks in the southern hemisphere.
As primeiras amostras de antropoquinas que vimos. Elas incluem tampinhas de metal, um brinco de plástico, um cravo de metal (possivelmente de um navio) e um fragmento transparente de plástico. (Fotos por Carla Elliff com licença CC BY 4.0)
No entanto, descrever as antropoquinas responde apenas a algumas das nossas perguntas. Sabemos agora que é possível, sim, que itens de lixo, inclusive plástico, possam ser incorporados em rochas sedimentares recentes. Sabemos que é um processo natural e a composição química do material natural que compõe essas amostras. Sabemos que isso está ocorrendo no Rio Grande do Sul.
Abrimos agora a porteira para mais um monte de perguntas: quão recentes são essas rochas? Quais as condições ambientais necessárias para sua formação? Qual a abrangência de sua ocorrência? Qualquer tipo de material consegue ser cimentado em uma antropoquina? Por quanto tempo esse lixo cimentado “sobreviverá” nas rochas? Deixarão vestígios? Quais as implicações dessa interação para a preservação da nossa geodiversidade? Se o nosso lixo chegou até as rochas, que chance temos de mitigar os impactos dessa poluição?
Me arrisco agora a responder, mesmo que superficialmente, a essa última pergunta. Não há dúvidas que a humanidade deixa sua marca no planeta. Seja pela presença de lixo, pelos sinais radioativos que deixamos com bombas nucleares, pela extinção de espécies (inclusive algumas da tal megafauna que mencionei) ou pela nossa contribuição de gases do efeito estufa. Se esta marca é irreversível, ainda não temos certeza. Discute-se também o uso destes tipos de ocorrências humanas no registro geológico do planeta para dar suporte à proposta de uma nova época geológica, o Antropoceno, ainda sem consenso em nível global.
Limpar por completo o planeta dos sinais deixados pela nossa sociedade moderna pode ser uma tarefa impossível e talvez sem sentido. Por isso, prefiro focar em algo mais tangível: reduzir os impactos dos sinais que estão aí e não permitir que continuem a se expandir.
Encontraremos ainda muitas antropoquinas no meio do caminho. Que sirvam de alerta e lembrete sobre nossa responsabilidade com a Terra. O que deixamos para trás diz muito sobre o nosso futuro.
A nossa pesquisa conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS, processo Nº 19/2551-0001804-5).
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Fiquei muito interessada no assunto, também sempre me perguntei sobre a influencia do lixo nas rochas. Li o artigo e foi muito bem feito, parabéns. Estou ingressando no mestrado com um projeto sobre sedimentação de plástico e rios. Espero ouvir mais de vocês.
Que marcas deixaremos no planeta para as futuras gerações? :(