Por Carla Elliff
Uma amizade tão bela quanto improvável.
Ilustração: Joana Ho.
Tainha na brasa é um dos pratos mais típicos do litoral sul do Brasil e a forma como esse peixe vai do mar ao seu prato em dois locais em particular traz uma história surpreendente. Acredita-se que a pesca artesanal da tainha tenha origem indígena, tendo sido depois influenciada por imigrantes vindos do Arquipélago do Açores que assentaram nesta região do país, passando a tradição de geração para geração.
Mas os pescadores artesanais e as tainhas não são os únicos atores nessa história. Um grande aliado dos pescadores são os botos, caracterizando o que se chama de pesca cooperativa.
Esses botos são da espécie Tursiops gephyreus, sendo seu parente mais próximo comumente chamado de golfinho-nariz-de-garrafa em outros lugares do mundo. Aliás, o gênero dessa espécie (Tursiops) é o mesmo do personagem no filme Flipper (Universal Studios, 1996)! Esses cetáceos são animais inteligentes e com comportamentos bastante complexos, inclusive com relação à comunicação e à socialização. Eles se orientam e caçam usando ecolocalização, um processo onde o animal emite um som e percebe os ecos produzidos para calcular a distância entre as coisas. Foi combinando essa estratégia de ecolocalização e uma parceria com os pescadores locais que esses botos desenvolveram uma nova maneira de se alimentar.
Boto da espécie Tursiops gephyreus (foto por Ignacio Moreno).
Atualmente há apenas dois locais no mundo onde esse ritual de amizade na pesca acontece: no estuário do município de Laguna (SC) e na Barra do Rio Tramandaí, entre os municípios de Imbé e Tramandaí (RS). Registros históricos sugerem que a prática também era comum nos estuários próximos aos municípios de Araranguá (SC), Torres (RS) e na Lagoa dos Patos (RS), mas hoje já não se vê esse fenômeno com tanta frequência.
Você deve estar se perguntando: por que essa pesca cooperativa só acontece nesses dois lugares? Como os botos aprenderam a pescar junto ao ser humano? Não tem perigo de a pesca fazer mal aos botos?
Perguntas assim, muitas ainda sem a resposta exata, têm motivado cientistas a pesquisar sobre o tema, como o Professor Ignacio Moreno da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que tão gentilmente forneceu imagens tiradas por ele e seus colegas para ilustrar o post de hoje! O prof. Ignacio é coordenador do Projeto Botos da Barra, realizado dentro do Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (CECLIMAR) da UFRGS. O objetivo do projeto é valorizar e conservar a pesca cooperativa, garantindo a continuidade dessa prática e a sobrevivência da comunidade de pescadores e botos na Barra do Rio Tramandaí.
E, afinal, como é que acontece essa parceria?
Na Barra do Rio Tramandaí, quando os botos detectam um cardume de tainhas, eles o perseguem e o leva para próximo das margens. Os pescadores, munidos de suas tarrafas (um tipo de rede de pesca circular), ficam lá a postos, esperando os sinais característicos que os botos fazem com suas cabeças, indicando que é hora de jogarem suas redes sobre o cardume encurralado. Sim, os botos acenam para os pescadores para avisar que os peixes estão ali! Assim, os pescadores conseguem pegar mais peixes em uma só tarrafeada e os botos conseguem abocanhar mais facilmente as tainhas que ficam desorientadas com a rede batendo na água.
Boto garantindo sua tainha (fotos por Ignácio Moreno).
Essa pesca de tarrafa é considerada uma estratégia sustentável por várias razões. Por exemplo, por se tratar de uma pescaria para comércio local ou até de subsistência, ou seja, consumo próprio, a pressão sobre os recursos pesqueiros é muito menor do que no caso da pesca industrial. Além disso, usando uma malha de tamanho adequado, a tarrafa se torna um material (ou petrecho de pesca) seletivo, capturando apenas peixes adultos de interesse comercial.
Com anos de convivência e ajuda mútua, criaram-se laços afetivos genuínos nessa interação. Os pescadores, que consideram os botos seus amigos, sabem identificar pelo nome qual deles está ajudando (ou às vezes atrapalhando). Tem a Geraldona, a Rubinha, o Chiquinho, o Lobisomem (conhecido por ser guloso e ter aprendido a abrir a tarrafa embaixo d’água!), a Manchada... Uma verdadeira família!
No entanto, nem tudo é alegria nessa história. A ocupação urbana do litoral norte do RS tem crescido de maneira intensa e desordenada, levando a impactos ambientais como a supressão de campos de dunas, a perda, fragmentação e desmatamento da vegetação nativa, a geração de resíduos sólidos em excesso, a contaminação da água, e o ruído e tráfego intenso de embarcações e de esporte náuticos. Além disso, a profissão de pescador artesanal apresenta certa vulnerabilidade social: apesar de oferecer uma oportunidade de pesca sustentável, é pouco valorizada e há menos jovens hoje aprendendo a tradição.
Esse cenário serve para reforçar a necessidade de medidas individuais e coletivas para melhorar o meio ambiente. Por exemplo, após a implementação de leis de zoneamento na área em 2016 e a fiscalização decorrente, os botos começaram a aparecer mais frequentemente durante o verão – época do ano em que eles não apareciam tanto, o que podia estar associado às intensas atividades de turismo e superpopulação de pessoas nesta área.
Então, lembre-se: se você estiver pelo litoral norte do RS ou em Laguna (SC), vá cedinho para praia e garanta sua tainha diretamente com o amigo do boto!
Para saber mais:
Projeto Botos da Barra:
Guia de apoio pedagógico para educadores: interação entre pescadores, botos e tainhas: aprendizados sobre cooperação, tradição e cultura. Eliza Berlitz Ilha e colaboradores. Porto Alegre: UFRGS, 2018. 90p.
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