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“Casa” pra quem precisa!

Por Pedro Freitas de Carvalho     


A Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) divulgou que em 2024, infelizmente, atingimos a marca de mais de 100 milhões de desabrigados no mundo e mais de 700 mil no Brasil. Vale a pena dizer que esse número tende a aumentar devido ao avanço dos oceanos e rios sobre as comunidades litorâneas e ribeirinhas, como consequência do aquecimento global, que promove o aumento de chuvas e o derretimento de geleiras. Esse é um assunto muito sério que deve ser tratado com a devida importância pelos governantes de todo o mundo. Lendo o título e este parágrafo, você pode ter pensado: Será que acessei o site errado!? Calma!!!


Para além de nós, humanos, a moradia servindo de abrigo também é uma questão para diversos organismos marinhos. Alguns exemplos são o peixe conhecido como maria-da-toca ou gobião-de- pedra (Bathygobius soporator – Figura 1a), que usa fendas de rocha do costão como refúgio, ou o caranguejo-uçá (Ucides cordatus - Figura 1b), que constrói a sua moradia no solo do manguezal. 


Até mesmo em animais pequeninos que vivem na coluna de água e são carregados pelas correntes marítimas, o zooplâncton, há um grupo de organismos que constroem suas “casas”. Mas, antes de falarmos desses organismos e a função dessas “casas” é necessário entender algumas coisas.


A foto da esquerda mostra um peixe em um ambiente recifal. O peixe é amarelo claro com manchas pretas pela cabeça e corpo e olhos são grandes. A foto da direita mostra um caranguejo branco, com pernas vermelhas. Ele está ao lado de um buraco. Ao seu redor o ambiente é composto por lama, areia, graveto, folhas e um pedaço de pau.

Figura 1: a. Bathygobius soporator – nome vulgar, maria-da-toca ou gobião-de- pedra. Fonte: Wikimedia Commons/ Flickr upload bot/ com licença CC-BY-2.0. b. Ucides cordatus – nome vulgar, caranguejo-uçá. Fonte: Wikimedia Commons/ Leoadec/ com licença CC-BY-SA-3.0.


Os principais e mais numerosos grupos do zooplâncton compõem um nível fundamental da cadeia alimentar marinha, como consumidores primários, onde esses organismos se alimentam principalmente de fitoplâncton. Desta forma, transferem a energia e a biomassa dos produtores primários (fotossintetizantes) para os níveis mais elevados da cadeia trófica, como peixes e crustáceos. A biomassa do fitoplâncton é muito disputada entre esses consumidores, o que promove diferentes estratégias na captura desse importante alimento. Mas, o que isso tem a ver com casa e moradia...? Aguenta aí! Parece que estamos meio perdidos, mas chegaremos lá!


A alimentação é fundamental para a sobrevivência de uma espécie, pois nesse processo os organismos adquirem energia para manter o seu funcionamento e para realizar atividades essenciais, como reprodução e locomoção. Segundo a teoria de Darwin, o sucesso na sobrevivência possibilita uma maior capacidade reprodutiva da espécie, passando essa característica vantajosa aos seus descendentes, fazendo com que esses permaneçam no ambiente evitando assim o seu processo de extinção, através da seleção natural. Observando a figura 2, vale enxergar a relação do tamanho dos organismos e o seu aparato de filtração para captura de fitoplâncton. Fazendo uma breve análise, qual desses principais organismos do zooplâncton estaria mais suscetível à extinção, baseado na proporção entre o tamanho do indivíduo e a superfície do aparato de filtração de organismos fitoplanctônicos? Qual deles teria uma menor eficiência de captura?    

 

A foto à direita mostra uma apendiculária, com uma linha vermelha com o código A1 indicando seu comprimento e uma linha vermelha com código A2 indicando o comprimento da boca. A foto do centro mostra um copepoda com uma linha vermelha com o código B1 indicando seu comprimento e uma linha vermelha com código B2 indicando o comprimento das antenas. A foto à esquerda mostra um doliolideo com uma linha vermelha como código C1 indicando seu comprimento e uma linha vermelha com código C2 indicando o comprimento do sifão oral. Comparando as três imagens, a apendiculária teria o menor aparato de filtração.

Figura 2: A – Apendiculária (Oikopleura longicauda), A1 – Comprimento da espécie, A2 - aparato de filtração (Boca); B – Copépode (Euchaeta spp.), B1 - Comprimento da espécie, B2 - aparato de filtração (Antena); C – Doliolídeo (Doliolum nationalis), C1 - Comprimento da espécie, C2 - aparato de filtração (Sifão oral). Fonte: Atlas de Zooplâncton da Bacia de Campos. Fotos do autor.


Sem querer induzir uma resposta, mas já induzindo, você provavelmente observou que as apendiculárias teriam uma menor vantagem na captura de alimento do que os outros dois animais mostrados na figura 2. Será mesmo? 


E se eu falar pra vocês que em um estudo recente publicado em uma excelente revista em 2023, a pesquisadora dinamarquesa Cornelia Jaspers e colaboradores, mostraram que as apendiculárias estão entre os organismos gelatinosos mais numerosos do zooplâncton, tanto em águas costeiras como oceânicas?! Esses animais possuem uma taxa de crescimento extraordinária, alimentando-se de organismos de diversos tamanhos e de diferentes grupos do fitoplâncton, levando uma vantagem competitiva entre os demais grupos zooplanctônicos. O estudo vai além, dizendo que as apendiculárias correspondem ao segundo grupo mais abundante e importante do zooplâncton, ficando somente atrás dos copépodes (crustáceos), e que a sua taxa de crescimento supera a de qualquer outro animal, sendo um dos maiores contribuintes na produção de carbono no ambiente marinho. O estudo ainda traz uma previsão: futuramente, com um aumento, já observado, na quantidade de animais gelatinosos, as apendiculárias se tornarão os organismos zooplanctônicos mais abundantes no ambiente marinho, substituindo os copépodes na transferência de energia na cadeia alimentar. 


Então, como um organismo com a boca de um tamanho tão limitado, tem uma importância fundamental na biomassa e produtividade da comunidade planctônica? E, o mais intrigante, o que isso tem a ver com a “casa”?


Observando a figura 3, talvez as coisas comecem a fazer algum sentido. As apendiculárias possuem uma estrutura secretada por elas mesmas chamada de oikoplasto, também conhecida como “casa” ou “house”, em inglês. Essa casa feita de muco serve como um filtro, onde o fitoplâncton, bactérias e outras partículas que servem de alimento ficam presos, assim como em uma rede de pesca. O seu tamanho interno é fundamental para a capacidade que esses organismos têm de se alimentar de diversas partículas, de grupos distintos de seres vivos (microalgas, protozoários, bactérias e vírus) muita das vezes inacessível para os outros filtradores do zooplâncton. Dessa maneira, a captura de presas de uma variada gama de tamanhos dá uma vantagem na obtenção de alimento para as apendiculárias sobre outros animais do plâncton. 


A figura acima é um esquema de filtração de uma apendiculária. O animal colorido em cinza está no centro do oikoplasto. À esquerda e acima no oikoplasto localiza-se o aparato de filtração, indicado por uma linha vermelha e a letra a minúscula. Uma linha vermelha com a letra b minuscula indica o comprimento do organismo. Setas em azul indicam o sentido de do fluxo. Abaixo uma foto com fundo preto de uma apendiculária dentro do oikoplasto.

Figura 3: Esquema e foto de uma Apendiculária, Oikopleura dioica com a casa ou oikoplasto.

a = aparato de filtração, b = tamanho do organismo.

Fonte: Modificado de Jaspers et al., 2023 com licença CC BY-NC-ND 4.0.


Demorou, mas talvez agora você tenha entendido a relação da “casa” com capacidade de alimentação das apendiculárias no ambiente marinho. Ao contrário dos humanos, da maria-da-toca e do caranguejo-uçá, a “casa” para as apendiculárias nada tem a ver com moradia, e, sim, com o aumento da capacidade da alimentação, o que pode estar ligado também com a baixa probabilidade de extinção desses organismos do ambiente e com a alta importância dos mesmos no funcionamento da cadeia alimentar marinha.


E você acha que acabou? Ainda não! De quebra, as casas já entupidas pelo excesso de partículas, perdem a sua eficiência de filtração e são constantemente liberadas pelas apendiculárias. Essas casas, que são sete vezes maiores que o tronco do animal, possuem uma natureza proteica que serve como uma das principais fontes alimentares para outros organismos zooplanctônicos que estão na superfície e em outras profundidades da coluna de água, sendo considerada um elemento bastante frequente na neve marinha (pequenas partículas de matéria orgânica que precipitam da superfície para o fundo do oceano, parecido com uma neve mesmo). 


Agora, se algum dia você, caro leitor, tiver a oportunidade de observar um exemplar de apendiculária proveniente de uma coleção biológica, em lupa ou microscópio, através de uma visita a um laboratório de zooplâncton ou a uma exposição, dificilmente vai encontrar esse organismo com uma “casa”, como a observada na figura 3. Isso porque, quando as apendiculárias se sentem ameaçadas por predadores, ou pelas redes de coleta, elas se livram das suas casas que são um peso para carregar na hora da fuga, apesar de úteis para a alimentação. Organismos com “casas” são observados vivos em cultivos, normalmente através de vídeos ou fotos.


Ufa!!! Acho que depois de tudo isso fica evidente a importância de conhecer cada vez mais esses fascinantes organismos do Filo Tunicata, Classe Appendicularia.


Se vocês quiserem mais informações, sugiro os sites: Vídeos: https://planktonchronicles.org/en/portfolio/larvaceans-their-houses-are-nets/; fotos e características das principais espécies do Atlântico Sul: http://www.intranet.biologia.ufrj.br/lizi/cat.zoo/index.html.


Também sugiro leituras mais aprofundadas de artigos científicos recentes, abordando características das apendiculárias (Jaspers et al., 2023) e como está o conhecimento atual e a distribuição do grupo na costa brasileira (Rocha et al., 2024).


Referências: 


ACNUR, (2024). Dados sobre refugiados. Acessado em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugiados. Acesso em 06/05/2024.

Heneghan, R. F.; Everett, J. D.; Sykes, P.; Batten, S. D.; Edwards, M.; Takahashi, K., I.; Suthers, I. M.; Blanchard, J. L.; Richardson, A. J. (2020). A functional size-spectrum model of the global marine ecosystem that resolves zooplankton composition. Ecological Modelling, 435, 109265.


Jaspers, C.; Hopcroft, R. R.; Kiørboe, T.; Lombard, F.; López-Urrutia, Á.; Everett, J. D.; Richardson, A. J. (2023). Gelatinous larvacean zooplankton can enhance trophic transfer and carbon sequestration. Trends in Ecology & Evolution. DOI: 10.1016/j.tree.2023.05.005.


Rocha, R. M.; Lotufo, T. M. C.; Bonecker, S.; Oliveira, L. M.; Skinner, L. F.; Carvalho, P. F. C.; da Silva, P. C. A. (2024). A synopsis of Tunicata biodiversity in Brazil. Zoologia 41: e23042. DOI: 10.1590/S1984-4689.v41.e23042.

 

Sobre o autor:


Formado em ciências biológicas, mestre em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é pesquisador do Laboratório de Zooplâncton e Ictioplâncton da UFRJ. Trabalha na identificação e ecologia de organismos zooplanctônicos marinhos, mais especificamente com organismos gelatinosos tunicados. Busca entender como as espécies do zooplâncton respondem a questões ecológicas e de qualidade de água. Além disso, se aventura como curioso fazendo registros fotográficos do zooplâncton nas horas vagas. O seu maior prazer é ser pai, em processo de aprendizado ainda. Gosta de música velha, insiste em praticar esporte e adora jogar conversa fora com os amigos.




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Cato Athena
Cato Athena
há 3 dias

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