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Da teoria à prática: cruzando o Oceano Atlântico de Sul a Norte

Atualizado: 5 de jun. de 2020

Por Luciana Shigihara Lima


Um mês a bordo de um curso flutuante, dialogando, questionando e fazendo ciência


Desde criança faço perguntas curiosas: por que o céu é azul? Como as ondas se formam? Como as nuvens “flutuam no céu”? De tantos porquês encontrei na pesquisa meu lugar de acolhimento. O prazer de descobrir e buscar constante aprendizado, movida sempre pela curiosidade me fez escolher a carreira acadêmica como atividade profissional. Nessa trajetória, nunca poupei esforços para sair da zona de conforto, a fim de aprender mais e mais.

Fiz curso técnico em hidrologia e graduação em Engenharia Hídrica, sempre com o enfoque maior em água doce. No mestrado, ao sair mais uma vez da minha zona de conforto, conheci Netuno, e toda a diversidade de cores, tons e particularidades que o oceano apresenta. De amostragens em campo coletando solos e medindo vazão de rios em dias de chuva, fui mergulhar em computação e modelagem numérica, casando a física com a biologia: tentando explicar como as mudanças climáticas podem afetar a dispersão de ovos e larvas de peixes entre as ilhas oceânicas brasileiras e o continente, semelhante ao trabalho da Clarissa, já apresentado aqui no blog.

Dentro deste mundo numérico e navegando nas ondas da internet e livros, aprendi bastante sobre os complexos processos que ocorrem no oceano (algumas vezes, inclusive, recorrendo ao Descomplicando Netuno). E, certo dia, imersa em meus cálculos, modelagens e mil abas abertas da internet (quem nunca, né?), encontrei o site de uma organização chamada POGO*(Partnership for Observation of the Global Ocean) informando que estavam abertas as inscrições para o SoNoAT 2019 (uma escola flutuante que foca em preparar e conectar os cientistas para o futuro). Preparei minha inscrição, carta de motivação e aguardei. E, no início do ano de 2019, recebi o tão esperado e-mail, eu era uma entre os 25 estudantes selecionados (foram aproximadamente 800 inscritos) para participar da expedição que sairia das Ilhas Falkland (Malvinas) rumo à Alemanha.


Os meses seguintes foram de preparação: exames médicos, envios de documentos, passaporte, terminar a dissertação, uma baita correria, que valeu a pena. No final de maio saí de São José dos Campos (BR) rumo a Punta Arenas (Chile), onde conheci os outros estudantes e professores, oriundos de todos os cantos do mundo, que embarcaram nessa aventura.

Chegando lá conhecemos a Universidade de Magallanes e a cidade Punta Arenas. Nos planos, passaríamos a primeira noite em Port Stanley nas Ilhas Falklands e conheceríamos cientistas destas ilhas remotas, mas devido a alguns contratempos, mal chegamos às ilhas e já zarpamos em nosso “lar” pelos próximos dias.

Primeiro contato com o R/V Polarstern, e logo, um frio no estômago quando percebi que tinha que subir pela escada de corda para entrar no navio. Fotos tiradas pelos colegas da expedição. Créditos: Debra Ramon e Anneke Heins. Licença de uso: CC BY-SA 4.0.


Foram dias de intenso aprendizado, em diversas áreas do conhecimento em oceanografia. O curso que participei se chama SoNoAT (South North Atlantic Transect), um programa (2016-2019) de treinamento que reuniu participantes internacionais por meio da colaboração entre o Alfred Wegener Institute (AWI), Partnership for Observation of the Global Ocean (POGO) e financiada pela Fundação Nippon e ATLANTOS. O tema científico de 2019 foi baseado nas interações entre o oceano e o clima e foi projetado para fornecer aos participantes uma visão completa dos princípios fundamentais sobre o oceano e mudanças climáticas.

Trajeto da expedição PS120 – SoNoAT 2019. Créditos: Ilias Nasis (Polarstern, AWI - F. Laeisz Group). Créditos: Ilias Nasis (Polarstern, AWI - F. Laeisz Group). Licença de uso: CC BY-SA 4.0.


Foi uma experiência única, levamos 26 dias para cruzar o Oceano Atlântico de Sul a Norte, de 60°S a 45°N, a bordo do navio R/V Polarstern, importante navio de pesquisa alemão, junto a pesquisadores de mais de 26 países diferentes e a tripulação que se preparava a para a Expedição MOSAIC2**.


Liderados pela chefe-cientista Karen Wiltshire, cerca da metade dos cientistas que embarcamos éramos mulheres. Esta expedição representou um uma ótima oportunidade para jovens mulheres cientistas e um grande exemplo de manutenção de igualdade de gênero, dada a dificuldade e desafio que é ser mulher na ciência, em um campo que historicamente é representado por homens.

Durante os dias embarcados fomos divididos em cinco grupos para assistir aos módulos do curso. A cada semana assistimos a aulas sobre assuntos técnicos e temas considerados de vanguarda na ciência. De extração de DNA da água em pleno mar aberto, filtragens de água para análise de clorofila, microplásticos, propriedades químico-físicas da água (em diversas profundidades), medidas de irradiância e análises de sensoriamento remoto, até boas discussões sobre sistemas climáticos, e cálculos em alto-mar. Foram semanas de intenso aprendizado, e de muito trabalho em equipe, além de ótimas trocas de ideias com os professores.

O legal disso tudo foi não só o intercâmbio de conhecimento científico, como também os diferentes olhares sobre um mesmo assunto, visto que a maioria de nós somos de profissões diferentes e de países com realidades diferentes. Mesmo assim, com um objetivo em comum: buscar entender toda a dinâmica do oceano, biológico, químico e físico, além do impacto antrópico e os efeitos das mudanças climáticas.

Módulos realizados durante o Floating Summer School SoNoAT 2019. Adaptado de Alfred-Wegener-Institut. Fonte: Alfred-Wegener-Institut. Licença de uso: CC BY-SA 4.0.


Além de aprendermos sobre cada assunto apresentado nos módulos, sentimos como é o dia-a-dia a bordo (para muitos de nós foi a primeira experiência em alto-mar). Auxiliamos na montagem e desmontagem dos laboratórios temporários, trabalhamos bastante em equipe e ao final, ainda embarcados, elaboramos projetos individuais. Ao mesmo tempo que nós, alunos, realizamos a “prova final” - ficamos responsáveis pelo último ponto de coleta com o CTD e a roseta, desde o planejamento até a execução.


Aula de instrumentação e máquinas oceanográficas, lançamento de XBT (sensor de temperatura), operação da roseta e CTD, coleta de água da superfície com o uso de balde, filtragem de amostras de água para análise de fitoplâncton, copos de isopor para mostrar o efeito da pressão no fundo do mar para crianças e jovens de escolas em vários países, uso de equipamento de sensoriamento remoto. Fotos tiradas pelos colegas da expedição. Créditos: Lilian Krug, Kristine Carstens, Luciana Shigihara Lima, Anneke Heins e Mara Gomez

Licença de uso: CC BY-SA 4.0.


Foram 26 nacionalidades a bordo, de todos os continentes, em que 24 horas por dia, 7 dias por semana pudemos conviver e discutir sobre ciências do mar (do café da manhã até as madrugadas de estudos e preparação de relatórios...). Para mim foi uma oportunidade incrível sentir na pele o que eu vinha estudando e observando apenas pela tela de um computador.

Inclusive, foi uma viagem de autoconhecimento, de ocupar “cargos” em equipes, e aprender a delegar e ouvir. Estamos em constante aprendizado, embora em alguns momentos que passamos em nossas vidas percebemos que realizamos um salto no amadurecimento. E, esta experiência, para muitos de nós foi um divisor de águas.

Algo que sempre digo: vale a pena sair da zona de conforto e enfrentar as barreiras da linguagem, distância, isolamento, entre tantas outras, pois podem te propiciar experiências únicas, que neste caso, marcaram não só a vida profissional de cada um de nós, como também a pessoal , brindando-nos com novos amigos além-mar!


Cientistas e parte da tripulação embarcados na PS120 a bordo do navio de pesquisa oceanográfico R/V Polarstern. Créditos: Eberhard Sauter (AWI)

Licença de uso: CC BY-SA 4.0.


 

Referências: Wiltshire, K. H. (2019): Expedition Programme PS120, Expeditionsprogramm Polarstern, Bremerhaven, Alfred Wegener Institute for Polar and Marine Research, 21 p. Mais informações em: SoNoAT

EXPEDITION PROGRAMME PS120 - Polarstern POGO - Partnership for Observation of the Global Ocean Mosaic Expedition *A POGO é uma parceria entre organizações e instituições oceanográficas de diversos países para promover a observação global do oceano, e concentra a atenção em questões de implementação, como compatibilidade técnica entre redes de observação; uso compartilhado de infraestrutura; e na divulgação pública e capacitação técnica.


**MOSAIC Expedition - Em setembro de 2019, o navio alemão quebra-gelo de pesquisas oceanográficas R/V Polarstern embarcou para uma expedição de um ano no Ártico, para estudar a dinâmica das mudanças climáticas e os efeitos do aquecimento global sobre a região mais boreal do planeta.

 

Sobre a autora:


Sou Mestre (2019) e doutoranda em Sensoriamento Remoto, técnica em Hidrologia (2009) e Engenheira Hídrica (2016). Atualmente estou vinculada ao Laboratório de Estudos do Oceano e da Atmosfera (LOA), no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Busco estar sempre alerta às oportunidades que me forneçam novas experiências e desafios. Movida pelos porquês, amo estar com os pés na água - doce ou salgada (literalmente), e as mãos no livro! #SoNoAT#PS120#Polarstern#vidadecientista#embarqueoceanográfico#convidados

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