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Etnobiologia e a descolonização do pensamento científico

Por Franciany Braga

Ilustração: Caia Colla


Desde criança eu me imaginava como uma bióloga bastante interativa com as pessoas, pois para mim sempre foi muito clara a ideia de que, se eu quisesse trabalhar com conservação da natureza, inevitavelmente precisaria trabalhar com pessoas; porque questões de conservação na maioria das vezes envolvem questões sociais e também porque todos somos natureza.


Ao entrar no curso de biologia, logo na primeira semana de aula eu já estava fazendo estágio e literalmente experimentei de quase todas as áreas um pouco. Porém, ao mesmo tempo, me sentia distante da ciência que fazia meu coração pulsar quando mais jovem. Somente no segundo ano de faculdade levei para o professor Artur Andriolo, meu orientador na época, que eu queria na verdade estudar as relações entre os organismos vivos e os sistemas culturais. Foi quando então Artur disse, ‘’Fran, isto o que você quer fazer tem nome e se chama etnobiologia, é ela que te possibilitará entender todas estas relações através dos estudos da ecologia e evolução dos sistemas socioecológicos”. Imediatamente comecei a estudar sobre o tema e enlouqueci ao ver a aplicação de diversas teorias ecológicas e evolutivas no comportamento social de seres humanos, como a teoria do nicho e do forrageamento ótimo moldando as escolhas de populações extrativistas.


Na foto a pesquisadora Franciany está abraçada com a entrevistada, moradora da região do Norte de Minas. Elas estão em um ambiente de zona rural, com uma casa simples ao fundo.
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Li diversos estudos e escrevi meu primeiro projeto de pesquisa com etnobiologia, cujo trabalho de campo ocorreu em uma área de muita luta e resistência social no Norte de Minas, com as populações potencialmente atingidas pela Barragem de Berizal. Juntos, nós desenvolvemos um documento que descreve a fauna que seria impactada caso a obra da barragem fosse concluída. Eu entrevistei pessoas que me deixaram realmente impressionada ao dividir seu saber acerca dos animais da área e sua paixão e vontade de defender aquele lugar. Graças a este povo, eu me encontrei quanto cientista.


Em 2013, já no final da graduação, concorri em um edital para trabalhar com pesquisa em Angola, no qual as próprias candidatas deveriam apresentar o projeto de pesquisa. Fui selecionada e a etnobiologia foi comigo.


Pesquisa em Angola


Em Angola realizei o primeiro levantamento da diversidade de mamíferos na principal área protegida do país após o início da guerra civil angolana em 1975, que ao desestruturar a segurança angolana, afetou também as pesquisas científicas. Foi uma imersão em um mundo tão impressionante que eu costumava brincar que queria testar todas as teorias do o livro Etnobiologia Bases Evolutivas e Ecológicas (Editor Ulysses Albuquerque). Nessa época, eu virei amiga dos fiscais do parque e filha dos caçadores e caçadoras que também vivem na área, morando em suas casas e sendo tratada como parte da família.


Trabalhar com etnobiologia exige também que a gente se adeque ao cotidiano dos informantes. Por exemplo, era comum que o informante falasse: ‘’Mana Francisca precisa me acompanhar até o roçado para fazer a entrevista e eu só posso responder quando o sol esquentar, hora que paro um pouco de trabalhar’’. Porém, como a lavoura era distante eu precisava acompanhá-lo logo cedo. Então, o jeito era acordar de madrugada, cozinhar minha mandioca na lenha e às 4h/4h30 estar pronta em frente à casa do informante. Às vezes minha casa estava a 10 Km da casa do informante e era preciso sair ainda mais cedo - principalmente quando precisava ir a pé. Outras vezes, para chegar até o informante que estava em uma parte mais distante da comunidade, era preciso pegar canoa de madrugada. Mas isso não era um problema e lá ia eu, neste último caso com algum outro morador que conhecesse bem o rio. Alguns informantes eram sublimes caçadores (conhecendo muito dos animais) e eu realmente queria entrevistá-los. Por isto, por vezes, esperei dias em determinada área para conseguir falar com determinada pessoa que, quando chegava, não necessariamente aceitaria participar da entrevista. Neste ponto também gostaria de falar que minhas primeiras entrevistas foram desastrosas.


Mas, por qual o motivo algumas pessoas não queriam falar nas primeiras entrevistas? Os mais diversos. Eu trabalhava com caça em uma região onde a atividade era proibida por lei. Por isso, inicialmente eu associei este ‘’desastre’’ ao fato das pessoas não quererem se abrir para falar de um tema que ‘’afinal’’ era proibido por lei.


Com o tempo, porém, fui percebendo que o(a) caçador(a) local e sua família viam a caça de subsistência como sua maior e mais bela arte e entendi que as entrevistas eram desastrosas não porquê os caçadores não queriam falar sobre ‘‘a arte da caça’’, mas porquê eu não queria ouvir sobre algo que para mim era um crime. Outro ponto, foi que mesmo depois de ver o significado da caça para aquele povo e conseguir fazer uma entrevista com tranquilidade no rosto, eu ainda não tinha compreendido o significado cosmológico - que ia além do uso - , e nesta fase, por mais que os caçadores se abrissem para conversar comigo, eu não fui capaz de de entender e colocar no papel o que eles de fato queriam dizer. Foi necessário um longo trabalho de descolonização dos meus tabus e mergulho em algo muito mais complexo do que as relações que eu enquanto bióloga costumava ter com a fauna.


Franciany entrevistando um caçador angolando debaixo de uma estrutura para dar sombra, feita de madeira e palha.
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Outras situações diziam respeito ao medo da/do informante em falar comigo, porque a associação de pessoa de pele branca (como a minha) com colonizadores, que destruíram vidas angolanas, ainda estava em sua mente. É lastimável falar isto, mas Angola se tornou independente de Portugal a pouco mais de quarenta anos e a guerra civil iniciada após a independência perdurou até 2002. Um grande líder de uma das comunidades e um dos maiores mestres que já tive enquanto pesquisadora - soba Francisco do Lutende - me ensinou com muita sabedoria a compreender e aprender com os ‘’nãos’’ das pessoas que se negavam a participar da pesquisa e como isto faz parte do exercício de se fazer etnobiologia. Tudo o que aprendi com o soba sobre isto daria um livro ou no mínimo outro texto no Bate Papo com Netuno.


Mestrado


Depois de viver mais de um ano em Angola, resolvi regressar ao Brasil para fazer mestrado. Mas deixei meu coração do outro lado do Atlântico e resolvi voltar para pesquisar sobre o efeito de guerras civis sobre a fauna silvestre no Suldoeste da África. Retornei a Angola vivendo meses de total imersão em campo, distante dos centros urbanos, sem contato com a família no Brasil, curtos períodos de sono em uma maca, trilhas em locais que ainda continham minas de guerra, transportes em condições perigosas, sem energia elétrica e com uma alimentação que dependia da chuva. No início eu me enxergava como quem fazia algo heróico, mas então comecei a perceber que aquela minha “aventura inacreditável” não passava da realidade diária das populações locais. Foi então quando comecei a entender que fazer etnobiologia é também ser ponte para pessoas, que muitas vezes são desassistidas, e que a luta deve ser nossa. Nosso maior objetivo agora é desenvolver, junto aos responsáveis pelo parque, um plano de co-manejo que assegure o envolvimento e a soberania das pessoas que vivem na Quiçama com a conservação da biodiversidade.


Esta pesquisa também tem gerado publicações fantásticas e uma reviravolta no tema. Alguns de nossos trabalhos podem ser acessados pelos links:



Os trabalhos também viraram matéria em dois canais de TV importantes, CBS e TPA, que podem ser assistidas pelos links:



Doutorado


Franciany entrevistando um morador de terras indígenas, sentados a beira de um rio com uma floresta de mata fechada ao fundo
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Atualmente, no doutorado, desenvolvo pesquisa com manejo de animais silvestres em 14 áreas protegidas de uso sustentável e terras indígenas na Amazônia e, mais uma vez, uma de minhas principais fontes de dados é o conhecimento ecológico tradicional. Mas preciso frisar que o conhecimento tradicional é mais do que uma ferramenta para coletar informações de campo, é uma construção epistemológica, tão valiosa quanto o conhecimento científico e que tem revolucionado diversos campos da ciência. Entretanto, o conhecimento destes povos ainda é por vezes negligenciado, inclusive por pesquisadores que nunca tiveram a oportunidade de um dia aprender com o saber tradicional.


Nesse ponto retorno ao título deste texto e digo que tal conhecimento tradicional ainda não pode ser percebido por muitos pesquisadores, porque estes ainda precisam descolonizar seu pensamento. Descolonizar para enxergar.


É preciso entender também que tais populações tradicionais, como as da Amazônia, são verdadeiras guardiãs. Principalmente agora, diante de um anti Ministério do Meio Ambiente e de um governo que tenta a todo custo entregar as florestas aos grandes latifundiários. Portanto, sem o respeito ao conhecimento destes povos acerca da biodiversidade e de seu reconhecimento como agentes essenciais para a conservação e manejo, não poderemos cuidar do que tanto amamos e acreditamos. Por isso, minha eterna admiração e amor a etnobiologia e aos povos tradicionais.


 

Sobre a autora:

Bióloga e doutoranda em Zoologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sendo pesquisadora executiva do Instituto Juruá e ao Laboratórios de Mamíferos e Etnobiologia da UFPB. Atualmente também faz parte da Rede Fauna, um grupo de pesquisadores engajados com a conservação e manejo de fauna amazônica. Desenvolve pesquisas nas áreas de sistemas socioecológicos, conservação da biodiversidade, impacto antrópico sobre fauna e manejo de base comunitária de caça na Amazônia e África subsaariana.



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