Por Raquel Saraiva
Embora a ciência já tenha conseguido desenvolver métodos alternativos e cientificamente válidos para alguns testes, ainda não é possível substituir o uso de animais em todas as áreas. Testes de toxicidade sistêmica, sensibilização, toxicidade reprodutiva e carcinogenicidade. No mestrado, avaliei os efeitos induzidos pelo envenenamento por jararaca (Bothrops leucurus) sob a pele e nos músculos de ratos com hipo e hipertireoidismo. Não tinha como substituir os animais. E na época nem pensei em substituição.
Desde minha iniciação científica, ao longo de quase quatro anos de laboratório, e durante o mestrado, fiz experimentos em ratos. Nesse tempo, em especial durante o mestrado, li muito sobre ética no uso de animais em laboratório e sempre tratei os animais visando minimizar seu sofrimento, dentro do possível em experimentação científica, e respeitando as determinações da legislação que trata do tema.
Registros de experimentos em animais datam pelo menos do século IV a.C., na Grécia Antiga. Já as referências ao bem-estar animal mais antigas são do século XIX, com a organização da Sociedade para Prevenção da Crueldade contra Animais (SPCA) em 1822 na Inglaterra. Com a divulgação massiva de informações por meio da internet, a discussão sobre o uso de animais em experimentação ganhou força na última década, assim como a pressão exercida pela sociedade e por ONGs para mitigar essa prática.
A expressão mais ampla da ética animal vem sendo a aplicação dos 3Rs (do inglês Replacement, Reduction and Refinement, e em português substituição, redução e refinamento), estabelecidos em 1959 pelo psicólogo William Russell e pelo microbiologista Rex Burch no livro The Principles of Humane Experimental Technique. A aplicação do conhecido conjunto dos 3Rs busca diminuir o número de animais usados em experimentos, minimizar dor e desconforto, e encontrar alternativas para a substituição dos testes in vivo.
Nas áreas em que ainda não se tem alternativa, além dos 3Rs, os animais devem ser tratados “dentro da ética, de forma que sejam respeitados como seres vivos que estão contribuindo para o progresso da ciência”, como consta no Manual de Utilização de Animais de 2008, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Para garantir isso, antes de começar os trabalhos, submeti meu projeto ao comitê de ética do instituto onde estava locado meu programa de mestrado. Detalhei tipo, dose e vias de administração das drogas que utilizaria, características morfológicas dos animais, esquema de manipulação e modo de anestesia e eutanásia.
Regulamentação
Qualquer projeto que utilize espécimes vivos de vertebrados deve ser submetido pelo(a) pesquisador(a) responsável à apreciação por um comitê de ética da instituição a qual ele(a) está vinculado(a), como está determinado na Lei nº 11.794, de 2008. Conhecida como Lei Arouca, esse foi o primeiro marco legal que tratou de modo detalhado os experimentos com vertebrados no Brasil, como explicado por Rosa Vasconcelos, coordenadora de assuntos regulatórios da Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa).
Os projetos são avaliados de acordo com cumprimento dos preceitos éticos e da relevância científica que caracterize a necessidade do uso de animais. É considerado que a proposta fere a ética se, por exemplo, for uma repetição de experimento já consagrado na literatura e sem justificativa plausível. A aprovação pelo comitê é suficiente para garantir a legalidade do uso dos chamados animais convencionais nos projetos, ou seja, camundongos, ratos, coelhos e hamsters, como apresentado no manual da FIOCRUZ e em uma pesquisa de revisão sobre o assunto conduzida por Mariana Guimarães e seus colaboradores.
Estas duas publicações também explicam que, no caso de uso de animais vertebrados “não convencionais”, como cães, gatos, aves, peixes (nós até já falamos do Zebrafish aqui), primatas não humanos e animais silvestres de qualquer espécie, é necessário também solicitar uma licença ao Ibama além da aprovação por um comitê de ética. A Instrução Normativa nº 7, de 30 de abril de 2015, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), determina a obtenção prévia de autorização ou licença do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para coleta de material biológico ou captura. Não há detalhamento sobre como se deve proceder para o caso de experimentos com invertebrados. No entanto, o que observei nos meus anos de pesquisadora é que o tipo de anestésico, ou mesmo seu uso, depende do bom senso do(a) pesquisador(a).
Uma análise de mais de 70 mil artigos científicos mostrou que a maioria dos trabalhos não descreve como os invertebrados são obtidos e transportados. As condições de captura e transporte, e o impacto da mudança de ambiente “podem comprometer a qualidade dos resultados da pesquisa” - além de obviamente “ser um descuido com o animal”, diz o estudo de Fischer & Santos, publicado em 2017. Mas não há regulamentação nem orientações nesse sentido.
As pesquisadoras Marta Fischer e Juliana Santos (2017) argumentam que a legislação não protege os invertebrados porque foi feita com base dados que mostram que esses animais respondem involuntariamente a danos feitos no seu corpo, como um reflexo. No entanto, as pesquisadoras denotam que em alguns países há exceções: a Suécia inclui todos os invertebrados nas normativas legais, e o Reino Unido e o Canadá passaram a incluir os cefalópodes após aderirem ao Manifesto de Cambridge, que justifica “a existência de receptores para dor em invertebrados como moluscos e artrópodes” como evidência suficiente para incluir esses grupos “na comunidade moral”. Mudança
Lembro de todo o cuidado na manipulação dos animais: além de me proteger com sapato fechado, jaleco, cabelo preso e luva, nunca usava perfume, fazia o mínimo de ruído possível, não fazia movimentos bruscos, dentre outras estratégias usadas para minimizar o estresse dos animais. Além da própria ética e empatia imprescindíveis ao lidar com um bicho, a adoção desses cuidados também evita erros nos resultados do trabalho decorrentes do estresse gerado na cobaia, o que pode arruinar a pesquisa. Mesmo nos artigos científicos esse processo precisa ser muito detalhado.
Ao longo do mestrado, manipular os animais começou a ficar cada vez mais difícil . Apesar de todo os cuidados tomados e do respeito aos animais, realizar os experimentos foi uma experiência penosa. Foi insuportável voltar ao laboratório para fazer testes adicionais, solicitados pelos revisores do meu trabalho antes da publicação do artigo. Eu chorava muito, ficava muito tempo me acalmando antes de entrar no biotério (local onde os animais são acondicionados antes do experimento). Além disso, fazer a eutanásia era outro sofrimento. Atividades que por tantos anos foram triviais para mim, viraram uma tortura.
Acho que isso aconteceu porque... a gente muda! Minha iniciação na meditação, me fez olhar para o mundo de outra forma. Além disso, a própria carreira acadêmica não me trazia mais alegria e com certeza isso influenciou minha ansiedade ao lidar com animais. Só imaginar que nem todos os laboratórios tinham o mesmo cuidado que nós já me deixava nervosa. E até hoje sofro pensando nos animais, tenho pesadelos frequentes e às vezes sinto até falta de ar.
Substituição
Eu não faria, novamente, trabalhos assim. Nunca. Fiquei tão traumatizada que até escrever sobre o tema não foi fácil. Se acho que teria outro jeito de fazer os estudos que desenvolvi? Não. Acho que os dados conseguidos foram importantes para elucidar algumas questões e, quem sabe, melhorar alguns tratamentos farmacológicos e médicos no futuro. Mas não é uma atividade que quero desenvolver com as minhas mãos.
Não virei ativista contra a experimentação em animais porque sei da sua importância e sei, também, que a prática ainda é insubstituível em muitos casos, em especial na fisiologia, farmacologia e patologia. Nos testes de novos medicamentos, os estudos in vivo permitem, por exemplo, observar o surgimento de efeitos colaterais. Ainda que a tecnologia venha avançando a passos largos, ela ainda está longe de assemelhar-se às complexas interações que ocorrem dentro e fora das células, dos tecidos, dos órgãos e dos sistemas dos organismos vivos, como explicado pela pesquisadora Mariana Guimarães e seus colaboradores em 2016.
No caso de testes de toxicidade locaizadal, já existem muitas alternativas, embora nem todas sejam fáceis de implementar no Brasil - mas isso é tema para outro post. Testes que, por sua vez, não têm tanta importância do ponto de vista médico, como testes para o desenvolvimento de cosméticos, estão proibidos em alguns países da Europa desde 2009. No Brasil, leis estaduais proíbem esse tipo de teste em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Paraná, Amazonas e Pará. Além disso, a pressão social tem funcionado para estimular as empresas a adotarem outros tipos de experimentos e implementarem uma política de “não testagem em animais” Uma lista atualizada de empresas nacionais que não testam seus produtos em animais pode ser conferida na página da ONG Projeto Esperança Animal.
Não acho que algum dia poderemos substituir o uso de cobaias em 100% dos experimentos. Mas torço e acredito em uma convivência mais respeitosa com os animais, com mais discussões sobre ética nesse ramo e também na redução do consumo de carne - porque não acredito que dá pra questionar o uso de animais em laboratório e fechar os olhos na hora de comer um bife, né?
Fontes:
BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz -FIOCRUZ. Manual de utilização de animais/FIOCRUZ. 1 ed. Rio de Janeiro: CEUA - FIOCRUZ, 2008. Disponível em: http://www.castelo.fiocruz.br/vpplr/comissoes_camaras-tecnicas/Manual_procedimentos.pdf. Acesso em 19 de março de 2020.
Fischer, M. L.; Zacarkin Santos, J. (2018). Bem-estar em invertebrados: um parâmetro ético de responsabilidade científica e social da pesquisa? Revista Latinoamericana de Bioética, 18(1), 18-35. Doi: https://doi.org/10.18359/rlbi.2865
Guimaraes, M. V.; Freire, J. E. C.; Menezes, L. M. B.. Utilização de animais em pesquisas: breve revisão da legislação no Brasil. Rev. Bioét., Brasília , v. 24, n. 2, p. 217-224, Aug. 2016 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-80422016000200217&lng=en&nrm=iso>. access on 21 Mar. 2020. https://doi.org/10.1590/1983-80422016242121.
Laquieze L, Lorencini M, Granjeir JM (2015) Alternative methods to animal testing and cosmetic safety: an update on regulations and ethical considerations in Brazil. Appl In Vitro Toxicol 1(4):243–253
Vasconcelos, R. M. de. Conhecendo a Lei Arouca, Lei n° 11.794, de 8 de outubro de 2008, que regula a pesquisa com animais. (2016) In: VASCONCELOS, R. M. de (Ed.). Marcos regulatórios aplicáveis às atividades de pesquisa e desenvolvimento. Brasília, DF: Embrapa, 2016. p. 111-150.
Leitura recomendada:
Cheluvappa R, Scowen P, Eri R. Ethics of animal research in human disease remediation, its institutional teaching; and alternatives to animal experimentation. Pharmacol Res Perspect. 2017; 5(4).
Matéria “‘Uso de animais em experimentos não é opcional’ diz pesquisadora”, por Guilherme Rosa e Juliana Santos
Matéria “Lei que proíbe testes em animais em MG é promulgada e entra em vigor”, por Juliana Cipriani
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