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História de Pescador


Tudo começou em 2007, quando a paulistana deixou o berço da cidade natal e decidiu viver na Amazônia. Os objetivos da mudança eram fazer o mestrado, estudar fisiologia de peixes de água doce, conhecer a floresta, aprender a pescar e ganhar asas. Destes todos, a pesca deixou a desejar...


O projeto de mestrado contava com muitas atividades e coletas em campo durante longos períodos pelo interior do Amazonas. Coletava peixes, fazia experimentos, conhecia gente, aprendia os costumes da mata e vivia intensamente a floresta e suas tradições. E nesse mar de novas experiências, nasceu a paixão pela conversa de pescador!


Naquela época, a conversa não era o objetivo do estudo, mas rapidamente passou a ser o objetivo pessoal. E assim, os longos e mornos finais de tarde foram preenchidos pela companhia de pescadores e suas famílias, sempre cheios de crianças, cachorros e, claro, um bom cafezinho, bem doce e fresco, como a tradição local não deixa faltar.


A partir desse papo, informal e descompromissado, foram nascendo as ideias para o futuro doutorado, até então apenas em planos porque o mestrado devia ser finalizado. E o tempo foi passando, as coletas acabando, o mestrado defendido, e a vontade de continuar as conversas só crescia. Mas e agora?


E aí que já estava traçado o tema do doutorado: ecologia humana de pescadores de pequena escala.

E foi assim que a migração para a ciência marinha aconteceu tão naturalmente quanto aquelas longas conversar na beira do rio, dando lugar a conversas mais direcionadas, na companhia de prancheta, lápis e com um oceano de água salgada à nossa frente.


Que delícia, ir para a praia para passar o dia conversando com pescadores! Era tudo o que eu queria! Mas como nesse momento o objetivo já era outro, as conversas já não eram mais descompromissadas e leves. Neste momento haviam perguntas a serem respondidas, uma metodologia a ser seguida, resultados a serem buscados e algo a ser concluído! Afinal, eu já estava fazendo as coletas do doutorado!

Foto: Laura Honda

O objetivo do doutorado era entender um pouco mais a pesca de pequena escala no litoral do nordeste brasileiro e trazer para perto da ciência acadêmica o conhecimento tradicional do pescador. Basicamente o que eu queria fazer era aliar o conhecimento tradicional às ciências marinhas e provar que este pode ajudar, e muito, a preencher as lacunas que existem na ciência e, assim, melhor embasar os planos de manejo e as políticas públicas. Mas para isso precisava provar que por trás da “conversa de pescador” havia conhecimento.

Foto: Laura Honda

Então, o que eu queria era comparar se as informações que conseguia com os pescadores estavam de acordo com o conhecimento científico, usando um modelo virtual de um ecossistema marinho. Esse modelo virtual tenta representar todas as relações ecológicas que existem no ecossistema real, como crescimento, reprodução, predação, entre outros. Para isso, criei dois modelos: um apenas baseado nas informações que obtive durante as “conversas” com os pescadores artesanais e outro criado com informações da literatura científica. E depois seria só comparar os dois!


Para a criação desse modelo de ecossistema marinho usei um software livre chamado Ecopath with Ecosim, que nada mais é do que um programa de computador onde inserimos todas as informações de um ecossistema real e conseguimos um ecossistema virtual. Este programa foi criado por Villy Christensen e Daniel Pauly em 1992, no Centro de Pesca da Universidade da British Columbia em Vancouver, Canadá, e que continua a ser aprimorado até hoje. Está baseado em equações de balanço de energia que definem a dinâmica natural presente no ambiente marinho e as relações ecológicas que ocorrem ali, ou seja, toda a energia disponível é ciclada entre as espécies presentes e é responsável pelo crescimento e reprodução dos organismos. Para isso é comparada as informações da quantidade de alimento necessária por dia para os predadores com as informações sobre o crescimento e reprodução das presas. O programa é capaz de criar uma “fotografia ecológica” do que está acontecendo no ecossistema naquele momento (Se quiser saber mais sobre o software acesse www.ecopath.org ou de uma olhada nas referências abaixo).


Para a criação do ambiente virtual marinho (ou de água doce, se preferir) precisamos definir o tamanho da área, colocar todas as espécies ou grupos presentes, inserir informações sobre a dieta dos organismos, definir quem são os predadores, o quanto cada um come por dia e a taxa de crescimento de cada espécie, sem esquecer de inserir a pesca por tipo de embarcação e apetrecho.


Definido tudo isso, o programa cria todas as interações biológicas e monta uma teia trófica de quem come quem, igualzinho ao esquema abaixo. A vantagem desse modelo é que além de criar um ecossistema de fácil visualização, ainda podemos inserir a pressão de pesca sobre determinada espécie alvo, como também o chamado by-catch (expressão usada pela ciência pesqueira para definir a pesca de espécies acessórias que são capturadas acidentalmente junto com a espécie alvo).

Essa foi a cadeia trófica criada pelo software Ecopath with Ecosim usando apenas as informações dos pescadores. A cor indica o nível trófico, sendo vermelho os organismos produtores da base do ecossistema (como as algas, o fitoplâncton e os detritos), e quanto mais azul, mais alto na cadeia trófica, representado pelos organismos no topo, ou seja, os predadores (tubarão, golfinho e grandes pelágicos). O tamanho do círculo representa a biomassa (quantidade de indivíduos e peso de cada grupo de organismos) e as linhas representam as interações tróficas dos grupos inseridos no ecossistema.

E o mais legal é que com esse modelo conseguimos “prever” como o ecossistema inteiro reagiria a um aumento (ou diminuição) da pressão de pesca, restrição de determinado apetrecho, fechamento de áreas ou mesmo a proibição total da pesca ou de determinada espécie alvo. Com isso, conseguimos um melhor entendimento sobre o futuro, caso algumas ações de manejo e conservação sejam (ou não) tomadas.


Mas e os pescadores? Ah sim! O resultado foi incrível: o modelo dos pescadores e o modelo científico são praticamente iguais! Ou seja, os pescadores possuem conhecimento que pode ser equiparado ao conhecimento científico em algumas questões, e este pode ser usado para preencher as lacunas de informações científicas sobre determinada área e/ou espécie. Além de ser de baixo custo, este tipo de informação pode ser acessada em um tempo bem menor em comparação à certas pesquisas científicas.


Mas claro que os pescadores não tem todas as respostas. Assim como na ciência, algumas questões continuam a ser uma grande incógnita para todos os seres humanos. Portanto, aliar a ciência ao conhecimento tradicional dos usuários dos recursos pode trazer um melhor entendimento sobre as relações ecológicas e facilitar a implantação de planos de manejo para a utilização destes mesmos recursos.

 

Para mais informações: 

Christensen V (2013) Ecological networks in fisheries: predicting the future? Fisheries 38(2):76–81

Christensen V, Pauly D (1992) ECOPATH II—a software for balancing steady-state ecosystem models and calculating network characteristics. Ecol Model 61:169–185

Coll, M., et al. (2015) Modelling dynamic ecosystems: venturing beyond boundaries with the Ecopath approach. Reviews in Fish Biology and Fisheries 25.2: 413-424.



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