Por Gabriel Stefanelli Silva
Quando comecei a ler sobre plástico no oceano, no tão distante ano de 2011, ainda estava no começo da graduação em biologia marinha. Naquela época, já sabíamos que existiam grandes quantidades de lixo – e não só plástico – flutuando por aí. Teve forte repercussão na mídia a existência dessas concentrações de lixo nos pontos em que as correntes marinhas formam os grandes giros, sendo o Grande Depósito de Lixo do Pacífico (GDLP), a maior concentração de lixo marinho do mundo. Para se ter uma ideia, o GDLP tem uma área de mais ou menos 1,6 milhão de km², o tamanho do estado do Amazonas! Conseguem imaginar? Apesar de muitas pessoas pensarem que essas concentrações são ilhas de lixo, elas são na realidade uma “sopa” feita de vários tipos de detrito. A maior parte é composta por microplástico, partículas plásticas que medem entre 5 mm e 1 µm – às vezes nem dá para ver a olho nu! Localizado entre a Califórnia e o Havaí, o GDLP é tão heterogêneo na sua distribuição de resíduos que ao longo da sua extensão podemos encontrar desde muito lixo, até pouco ou nenhum lixo. Mas apesar de famoso, o GDPL é só um dos pontos de acúmulo de lixo marinho – então, para onde vai o resto?
Extensão do Grande Depósito de Lixo do Pacífico (GDLP), entre a Califórnia e o Havaí. A figura mostra que existem dois “giros de lixo” na Zona de Convergência Subtropical. O giro oeste é menos extenso e está localizado próximo ao Japão.
(Fonte: NOAA Marine Debris Program, domínio público)
Seis anos depois, quando terminei o mestrado na temática de peixes de água doce, decidi voltar às minhas raízes e me aprofundar sobre o lixo no mar no meu projeto de doutorado. Achei um artigo publicado em 2016 sobre um grupo de cientistas britânicas lideradas pela pesquisadora Dra. Michelle Taylor (que continua sendo uma grande referência na área), sobre o primeiro registro de ingestão de microplástico em animais de mar profundo, e aquilo me deixou muito animado! Entrei em contato com o Prof. Paulo Sumida do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO - USP) e começamos a trabalhar algumas ideias. O laboratório do Paulo é o único especializado em mar profundo no Brasil, e me pareceu ideal para fazer um projeto sobre o lixo nessas regiões tão remotas do oceano. O mar profundo, desde que começou a ser estudado no final do século 19, ainda é um prato cheio para a pesquisa de exploração! E na questão do lixo plástico, vemos muito flutuando na superfície, mas temos pouquíssima noção sobre onde é que tudo isso vai parar...
O que já sabemos é que grande parte do material que flutua na superfície acaba afundando pela ação de correntes marinhas e pelo acúmulo de microrganismos, que aumentam a densidade das partículas. Eventualmente, esse lixo chega ao sedimento do fundo e fica retido entre os grãos de lama e areia. Isso significa que os animais que se alimentam de material depositado, como os pepinos-do-mar, e filtradores, como os mariscos, são extremamente suscetíveis à ingestão de microplástico. O Paulo e eu decidimos, então, fazer uma análise sobre a ingestão desse material ao longo da teia alimentar de profundidade, verificando se uma partícula ingerida por determinado organismo poderia ser transferida ao seu predador, um fenômeno conhecido como biomagnificação. Isso significa que animais na base da teia (ou de menor nível trófico), mesmo sendo incapazes de ingerir uma grande quantidade de microplástico, poderiam causar um acúmulo de lixo nos tratos digestivos de seus predadores quando consumidos em grande número, e assim por diante. Ao morrer, os organismos predadores de topo poderiam, ainda, devolver o microplástico ao ambiente e reiniciar o processo. Ao longo do tempo, esses ciclos de ingestão de lixo ficam cada vez mais graves e mais deletérios ao ecossistema.
Exemplo de biomagnificação de microfibras plásticas (em azul) a partir do consumo de organismos contaminados ao longo de uma cadeia alimentar marinha. De baixo para cima, há um aumento no nível trófico dos organismos, começando por microcrustáceos do zooplâncton, passando por peixes e terminando com uma ave predadora.
(Fonte: por Gabriel Stefanelli com licença CC 4.0 SA-BY)
Trabalhar com mar profundo – e fazer pesquisa oceânica como um todo – pode ser um desafio. Uma parte do meu doutorado envolve cruzeiros científicos, e minha primeira expedição embarcada tinha como destino um ponto a mais de mil quilômetros da costa de São Paulo. Ao final de cinco dias de viagem, com mar violento (e muitos vômitos), tivemos um problema com as redes e nem foi possível fazer a coleta. Felizmente, sempre há um plano B e hoje já tenho material de outras expedições, inclusive animais coletados desde os anos 80 e que fazem parte da Coleção Biológica Prof. Edmundo F. Nonato do Instituto Oceanográfico da USP. Juntando todo o material que tenho disponível, são mais de 30 anos de informação sobre poluição no oceano. Puxado, mas muito interessante!
Estou quase na metade do doutorado, e apropriadamente quase metade dos organismos que eu analisei tinha pelo menos uma microfibra em seu interior. E enquanto esperamos a volta das atividades da universidade para analisar essas microfibras, continuamos vendo notícias sobre poluição marinha. Mês passado foi publicado um estudo mostrando que plástico há mais de 20 anos no fundo do mar se mantém preservado como novo e fornece um ambiente propício a microrganismos que normalmente não estariam naquela área, o que pode trazer grandes ameaças ao funcionamento do ambiente de profundidade. Também recentemente foi descoberta uma nova espécie de anfípoda – um tipo de crustáceo – de mar profundo que foi coletada com microplástico no estômago. A espécie até recebeu um nome simbólico, Eurythenes plasticus, e é apenas mais um exemplo de como o lixo que nós produzimos chega aos locais remotos do oceano, dos polos até as regiões mais profundas do planeta. Muito me espanta como o plástico, principalmente na forma de micro e nano partículas, está impregnado no ambiente marinho, e que até o peixe consumido na mesa de tantas casas pode estar contaminado por um poluente que nem conseguimos ver direito! O momento em que vivemos parece realmente desesperador; seria possível tirar algo positivo dessa situação?
Justamente por ser prontamente chamativo, o tópico de lixo no mar tem promovido ondas de mobilização por um maior cuidado com o ambiente. Uma das evidências recentes foi a proibição de sacolas plásticas e canudos aqui em São Paulo e em outros estados do Brasil. Entre outras iniciativas, também temos a proibição de itens plásticos de uso único na Europa, projetos de recuperação de redes de pesca abandonadas nos EUA e estratégias de participação de jovens no combate à poluição por plástico na Ásia. Esse é o melhor momento para discussões sobre o impacto antrópico na natureza, e não há como deixar para depois. É agora que temos o potencial de mudar a percepção das pessoas sobre como somos capazes de alterar – para pior ou melhor – o ambiente, com um microplástico de cada vez. Ou então, se assim preferirmos, um microplástico a menos por vez!
Lixo em uma praia de São Vicente, litoral Paulista.
(Fonte: foto por Fernando De Grande com licença CC 4.0 SA-BY)
Literatura complementar sugerida:
Sobre o autor:
Me interesso sobre o oceano (e o mar profundo) desde criança. Fiz graduação em biologia, mestrado em ecologia e estou a meio caminho de um doutorado em oceanografia. Minha área de pesquisa primária é a ecologia, com uma pitada de poluição e atividades de educação e alfabetização oceânica. Sou fã de Pokémon, gosto de cozinhar para a minha ecóloga preferida e encher a paciência da Tapioca e do Dominique, meus gatos. Qualquer dúvida, comentário, ou sugestão, pode mandar para gabrielstefanelli@hotmail.com.
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