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Nature, o direito das mulheres e uma volta ao passado

Atualizado: 2 de dez. de 2020


Um artigo publicado na semana passada na revista Nature causou grande indignação na academia, principalmente entre as mulheres, já que concluía que mulheres orientadas por outras mulheres tinham menos sucesso acadêmico do que aquelas orientadas por homens. No post Como validar o machismo estrutural com uma publicação mal feita mostramos que as conclusões foram baseadas em dados não confiáveis, pouco representativos, que as análises eram limitadas, e que portanto o artigo jamais poderia ter sido publicado.


Além disso, parece mesmo uma afronta que nesse momento, quando mulheres levantam a sua voz, no meio acadêmico e em todas as esferas da sociedade, para expor os problemas causados pela desigualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, um artigo seja publicado em uma revista tão conceituada.


No entanto, isso não deveria nos surpreender. Basta olhar para a história e veremos que sempre existe um grupo deslegitimando as reivindicações ou até mesmo questionando a capacidade das mulheres.


"Origem e desenvolvimento de uma sufragista. Aos 15 uma princesinha, aos 20 uma coquete, aos 40 ainda não se casou, aos 50 uma sufragista.” Fonte: Hypeness sob licença CC by NC-SA 2.5.BR.


Assim que a indignação por causa do artigo começou a pipocar nas redes sociais, imediatamente me lembrei de uma carta escrita em 1920 por Virgínia Woolf, endereçada a um crítico literário inglês, sobre suas afirmações de que as mulheres eram intelectualmente inferiores. O crítico baseou sua afirmação no fato de que pouquíssimas mulheres, ou nenhuma, se destacava no campo da arte.


Na carta Virgínia afirmava que não faltava talento às mulheres, mas sim oportunidade. As mulheres ficavam aprisionadas em casa, lidando com os afazeres domésticos, como propriedade de seus pais, irmãos e maridos. As mulheres não podiam decidir o seu destino e eram proibidas de estudar. Apenas mulheres pobres tinham o “direito” de trabalhar para garantir o seu sustento, em péssimas condições e com salários bem inferiores aos dos homens.


Ela explicou que para cada homem bem sucedido existiam muitos outros que não o foram, e que, portanto, era preciso que muitas mulheres exercessem determinado ofício para que algumas delas se destacassem. Além disso ela escreveu: “Mas não é preciso apenas educação. É preciso que mulheres tenham liberdade de experiência; que elas difiram, sem medo dos homens, e que expressem sua diferença abertamente…” “...que toda atividade da mente seja estimulada de modo que sempre exista um núcleo de mulheres que pensem, inventem, imaginem e criem tão livremente quanto os homens, sem nenhum medo do ridículo e da condescendência.


Movimento anti sufragista nos Estados Unidos. Muitos tentaram impedir que as mulheres tivessem direito de votar e escolher seus representantes políticos. Fonte: Wikimedia Commons. Imagem de domínio público.


Parece que muito tempo se passou e que hoje nós mulheres temos direito a tudo e que logo alcançaremos a tão sonhada igualdade/equidade. Não precisamos reclamar, porque as coisas vão melhorar, basta deixar o tempo agir. Só que não é bem assim. Todos os direitos que possuímos hoje não nos foram dados de bom grado, não foi um processo evolutivo natural, e não foi rápido.


A entrada das mulheres na universidade aconteceu primeiro nos Estados Unidos em 1837, com a criação de universidades exclusivas para as mulheres, enquanto no Brasil, o início do acesso ao ensino superior para mulheres ocorreu de forma extremamente restrita nos anos de 1880.


Excursão de integrantes da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino – FBPF ao Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro em 1930. Fonte: Acervo Arquivo Nacional. Imagem de domínio público.


No cenário político, o direito ao voto foi conquistado pelas neozelandesas em 1893, mas foi instituído para todas as mulheres na África do Sul somente em 1994 e na Arábia Saudita, só para as eleições municipais, em 2015. No Brasil, as mulheres conquistaram o direito de votar em 1932, após um longo processo de quase 100 anos de luta e da participação decisiva da zoóloga Bertha Lutz.


Mesmo assim, era preciso ter autorização do marido, ou uma comprovação de renda, no caso de viúvas ou solteiras. Mas foi em 1965 (ou seja somente há 55 anos!) que essas restrições foram extintas. E só a partir da constituição de 1988 que passamos a ser reconhecidas como iguais aos homens em direitos e deveres. Vale ressaltar que todas essas conquistas foram alcançadas graças à articulação e cooperação feminina.
















A educadora e sufragista americana Nannie Helen Burroughs. Fonte: Wikimidia Commons. Imagem de domínio público.














A bióloga, política e sufragista brasileira Bertha Lutz. Fonte: Ministério das Relações Exteriores sob licença CC BY-ND 3.0.



E isso nos leva a outro ponto sobre o artigo publicado na Nature: ao afirmar que uma mulher mentorada por outra tem menos chances de prosperar, ele parece querer enfraquecer o movimento de união entre as mulheres, ou sororidade, que tem crescido nos últimos anos (como por exemplo, os coletivos Liga das Mulheres pelo Oceano e o Ictiomulheres). Embora não seja dito no artigo, essa ideia de que mulheres não deveriam trabalhar juntas traz à tona aquela velha falácia de que mulheres são inimigas naturais. Um truque bem conhecido do machismo estrutural.


Na verdade os autores não explicam porque as mulheres não obtém sucesso acadêmico quando trabalham juntas. Dizem apenas que talvez elas tenham tarefas demais e que um homem resolveria tudo. É até sútil, mas você pode chegar à conclusão de que, na verdade, as mulheres nem precisam fazer ciência, já que, como mentor ou mentorado, a performance masculina é sempre superior, sendo a dupla homem-homem a que rende um maior número de publicações. Aqui está claro o discurso do homem salvador, aquele que sempre salva a mocinha no final, e que é sempre relatado em filmes, novelas, desenhos animados e, agora, até em um artigo científico...


O nascimento do coletivo Ictiomulheres durante a mesa redonda "Participação e representatividade de mulheres na Ictiologia", realizada em Belém, no XXIII Encontro Brasileiro de Ictiologia em 2019. Fonte: Ictiomulheres. Todos os direitos reservados.


Coincidentemente, este artigo foi publicado exatamente cem anos depois da resposta de Virgínia Woolf ao crítico literário. Agora, em 2020, ainda estamos nós aqui, indicando as contradições de uma publicação que novamente parece querer diminuir a capacidade das mulheres, desconsiderando todo o contexto histórico, social e local no qual estamos inseridas. Isso nos mostra que para a igualdade de direitos, a máquina do tempo existe, e que se não estivermos atentas, ela só nos levará para o passado e nunca para o futuro que queremos.


 

Referências









Marcia Tiburi. Vamos juntas? – O guia da sororidade para todas. Rio de Janeiro: Galeria Record. 2016.



Virginia Woolf. As mulheres devem chorar... Ou se unir contra a guerra: Patriarcado e militarismo. 2019. Organização e Tradução: Tomaz Tadeu. Prefácio: Guacira Lopes Louro. Autêntica Editora.




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