Por Juliana Leonel
O mundo oceanográfico é cheio de histórias de descobertas, muitas delas que mudaram completamente a forma como vemos a vida (e sua evolução). Ao longo dos séculos, descobriu-se que a vida não se restringe apenas às camadas superiores do oceano e que processos biogeoquímicos e adaptações específicas contribuem para permitir que organismos se desenvolvam em zonas abissais (profundidades maiores que 4.000 m), nos poros de rochas abaixo do assoalho oceânico e em locais com elementos tóxicos para a maioria dos demais seres vivos.
Na década de 1970, cientistas descobriram, próximo das Ilhas Galápagos a quase 3.000 m de profundidade, um ecossistema até então desconhecido: aglomerados densos de organismos que crescem no entorno de jatos de água quente (de até 350° C) oriundas de fontes hidrotermais.
As fontes hidrotermais são aberturas do fundo oceânico, em regiões de alta atividade tectônica, onde a água do mar percola a crosta oceânica recém-formada. Durante esse processo, a água é aquecida pelo magma e alguns elementos são removidos enquanto outros são incorporados a ela. Com o aquecimento, a água emerge no assoalho oceânico na forma de fontes. A composição desta água e a sua temperatura vai depender da composição basáltica da crosta oceânica que ela teve contato e da proximidade com a cordilheira oceânica, respectivamente. Enquanto algumas fontes atingem temperaturas maiores que 300°C, outras não ultrapassam algumas dezenas de graus.
Fonte: NOAA Photo Library em domínio público.
Devido a ausência de luz, bactérias e arqueas usam os elementos presentes na água do mar - ao invés da luz do sol, como fazem os fotossintetizantes - como fonte de energia para produzir matéria orgânica, processo chamado de quimiossíntese. Esta é a base da teia alimentar para camarões, vermes tubícolas, bivalves, caranguejos, anêmonas, polvos, entre outros, que compõem o ecossistema no entorno das fontes hidrotermais. Entre os organismos deste ecossistema, um grupo de vermes tubícolas, chama a atenção: com um comprimento de 2 m, diâmetro de um braço humano e tufos de tentáculos projetados a partir de um tubo (o pogonóforo), estes vermes não possuem boca, nem trato digestório ou ânus. Então, como eles se alimentam? Ao longo do seu corpo, há trofossomas: tecidos que hospedam bactérias simbiontes que usam o sulfato de hidrogênio expelido pelas fontes hidrotermais e absorvido pelos tentáculos do verme hospedeiro como energia para produzir a matéria orgânica que servirá de alimento a ele.
Não são apenas as fontes hidrotermais que abrigam descobertas incríveis. Em outras regiões profundas do oceano, as vezes chegando a 10.000 m de profundidade, na região chamada zona hadal, é encontrado um grupo de organismos muito curioso: os xenofióforos; organismos eucariontes formados por apenas uma célula em fita e com comprimento de até 20 cm. Estes pequenos grandes protistas são muitas vezes os dominantes em algumas regiões e auxiliam na diversidade local, pois servem como habitat para outros organismos (equinodermas, bivalves, crustáceos, etc). Suas estruturas auxiliam a “prender” partículas orgânicas que servem de alimento para diversas espécies. Os xenofióforos secretam uma substância adesiva ao longo do seu corpo na qual aderem conchas e grãos de sedimento que formam uma “cápsula” em torno do organismo.
Fonte: NOAA's Ocean Explorer em domínio público.
Se formos um pouco mais fundo… espera, mais fundo que o assoalho oceânico a 10 km de profundidade? Sim! Porque vamos agora para a região abaixo do assoalho oceânico, no sedimento e rochas que ali se encontram. Quanto mais aumenta a profundidade - e, consequentemente, a pressão - mais diminui o interstício (espaço) entre os grãos dos minerais. Por isso, até a década de 1970, acreditava-se que não haveria vida abaixo dos primeiros centímetros de sedimento do leito oceânico. Hoje, sabe-se que há vida - bactérias e arqueas - entre os minerais de rochas a 3.200 m de profundidade abaixo do fundo do oceano. Estes organismos realizam quimiossíntese e são a base da teia trófica de consumidores primários também muito pequenos que têm uma taxa metabólica muito baixa, em que a divisão ocorre apenas uma vez entre 100 a 2000 anos. Juntos, estes produtores primários e consumidores, constituem o ecossistema microbiano litoautotrófico de sub-superfície (SLIMES, sigla em inglês), onde destaca-se um grupo de bactérias muito menores que as demais, as ultramicrobactérias (± 0,3 μm). Alguns estudos indicam que essas bactérias podem nos auxiliar a entender as primeiras formas de vida na Terra.
E aí, você tinha ideia de tudo que acontece e vive lá no fundo (bem fundo) do mar?
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Sobre a autora
Juliana Leonel é formada em oceanologia na FURG com doutorado em oceanografia química pela USP. Entre um trabalho, uma bolsa e um intercâmbio passou também pela Unimonte, UFPR e UFBA, Texas A&M University, Health Department of New York, Heriot-Watt University e da Stockholm University. Atualmente é professora adjunta na UFSC. Trabalha com poluição marinha, principalmente contaminantes sintéticos e resíduos sólidos. Mas também atua na geoquímica estudando o ciclo do carbono no ambiente marinho. Desde abril/20 tem se aventurado como mãe do Ian. Não abre mão de cozinhar e experimentar novos sabores, mas não sem antes estudar os processos/química que tornam um prato possível. Também gosta de viajar, ler, fazer trilha e tomar um banho de mar (ou cachoeira). Participa do BPCN desde 2018 como editora e é uma das responsáveis pela página no twitter. É a chata dos "direitos autorais" e quer que todos usem/produzam material livre com licença creative commons.
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