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“Não tem como recuperar”

Atualizado: 3 de jul. de 2023

Por Raquel Moreira Saraiva

Foto: Eduardo Melon.

Incêndio no Museu Nacional deixa gerações de pesquisadores órfãos


“Como resgatar um espécime-tipo de uma coleção? Como resgatar algo que foi coletado há 50, 100, 200 anos? Como resgatar 200 anos de acervo?”. O professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Luiz Norberto Weber foi um dos cientistas que ficaram órfãos na noite do último domingo (02 de setembro) com a maior tragédia museológica do país, a destruição do Museu Nacional (MN) no Rio de Janeiro em decorrência de um incêndio.


Muitas coleções do Museu foram inteiramente perdidas. “Coleção de mais de 5 milhões de insetos foi embora, não sobrou nada, virou cinza. É um perda de anos e anos de estudo, de depósito em coleção e gasto de energia. Tudo foi reduzido a pó em poucas horas”, afirma Weber. De acordo com a BBC News, circula entre os pesquisadores a informação de que os armários onde ficavam as coleções de insetos se quebraram e foram queimados quando o terceiro andar, onde estavam, desabou.


Como muitos cariocas, o primeiro contato do pesquisador com o Museu foi ainda na infância. “Era comum nossos pais nos levarem para a Quinta da Boa Vista. Lá tem um zoológico, também tinha o Museu, e nós frequentávamos o local”. Como estudante de graduação do curso de biologia, Weber voltou ao local como estagiário e, anos depois, como mestrando e doutorando, entre 1994 e 2004.


“Geralmente as pessoas vinculam o museu a um acervo associado à exposição pública. Mas o museu também é dotado de vários departamentos e laboratórios vinculados a diversas expertises. Ele também concentra um grande número de coleções científicas e, no meu trabalho, eu estava muito vinculado a pesquisar esses bichos que existem em coleção científica, desenvolvendo pesquisa a partir da observação desses animais”, diz, ressaltando que não poderia desenvolver o mestrado e o doutorado se não tivesse tido acesso às referidas coleções científicas.


Perdas

As coleções que auxiliaram Weber não sofreram com o incêndio porque ficavam em um prédio anexo ao edifício histórico - As coleções de vertebrados, herbário, alguns meteoritos e fósseis, uma biblioteca de 150 anos com quase 500 mil exemplares e parte da coleção de invertebrados também estão a salvo. O Centro de Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV) do Departamento de Invertebrados do Museu Nacional, por outro lado, foi inteiramente destruído. “Quando eu cheguei lá, senti como se tivesse em um pesadelo e fiquei esperando eu despertar. Eu não pude entrar, mas a minha sala [localizada no térreo] tinha janela na fachada e pude ver, mesmo distante, a destruição”, lamenta a técnica do MEV Camila Messias.


Estimativas iniciais de pessoas que trabalhavam no Museu indicam que cerca de 90% do acervo pode ter sido perdido. A biblioteca de Antropologia e de Ciências Sociais do museu, o acervo de Línguas Indígenas, com gravações desde 1958 dos cantos em muitas línguas sem falantes vivos, o mapa étnico-histórico-linguístico original com a localização de todas as etnias do Brasil - único registro datado de 1945 - e toda a coleção egípcia teriam sido totalmente destruídos. “Não tem como recuperar, você não recupera uma coleção, você recomeça a partir do zero. É lastimável”, diz o professor Weber.


O levantamento e o resgate do acervo que sobreviveu não têm prazo para serem concluídos. Embora a dimensão material da tragédia ainda não tenha sido determinada, pesquisadores lamentam a perda de anos de produção científica, de história e cultura. "Perdemos acervos únicos, história, conhecimento cientifico, anos de dedicação de funcionários e alunos que juntos tornavam o Museu Nacional, com todas as dificuldades, um lugar e de beleza e riqueza sem igual", diz Anaíra Lage, doutora em Zoologia pelo Museu Nacional.


Descaso


Apesar das reformas e manutenções recentes que o laboratório tinha passado no último mês, Camila Messias conta que a falta de conservação do prédio dava sensação de insegurança. “O Museu era uma bomba relógio. Cheio de coleções com espécimes em líquidos inflamáveis e com a História do Brasil dentro dos muros. Foi um ataque a nossa cultura”. 


Segundo levantamento feito pelo jornal El País, atualmente o Poder Executivo investe mais na lavagem dos 83 carros oficiais da Câmara dos Deputados e na manutenção do Palácio da Alvorada, que está desocupado, de que os cerca de R$ 206 mil que estavam destinados ao MN em 2018 - há cinco anos esse orçamento flutuava entre R$ 1 milhão e R$ 1,9 milhão anualmente. De 2015 para cá, além do orçamento cada vez mais minguado, só 2 dos 49 parlamentares do RJ demonstraram preocupação em angariar recursos para o Museu Nacional . 


O descaso com o Museu, segundo as fontes ouvidas pelo Bate-papo com Netuno, é antigo e conhecido pelos alunos, professores e funcionários que ali conviviam. “Existe um descaso com a cultura, a ciência e o conhecimento no Brasil. É impressionante, isso parece até um projeto político, com relação à cultura e conhecimento em ciência”, diz Weber. “Apesar de todos os percalços, o museu era abraçado por quem estudava lá e por quem era vinculado como funcionário”, acrescenta Weber.


“Para a maioria dos estudantes o museu era como uma casa, afinal, muitos passavam mais tempo no museu que nas suas próprias casas. No MN as coleções eram um pedacinho da gente, e cada um, a seu jeito, cuidava para preservar o que tinha ali”, conta a doutoranda do Museu Nacional Anaíra Lage. Ela defendeu a tese na última sexta-feira (31) e perdeu toda a papelada no incêndio. 


“Os documentos da minha defesa e a tese impressa foram queimados junto com a secretaria da pós-graduação. Agora é aguardar a PPGZOO se reorganizar para darmos continuidade ao trabalhos da casa. Mas isso é o de menos. A dedicação dos funcionários é destacada pela técnica Camila Messias, que também era estudante de Ciências Biológicas da UFRJ. “Muitos professores tiravam dinheiro do próprio bolso, criaram dívidas, para aumentar suas coleções viajando pelo mundo. Pessoas deixaram famílias para se dedicar ao Museu e à pesquisa”


Além da omissão do poder público, o desconhecimento do Museu e da sua importância entre os brasileiros ficou evidente com a tragédia. O Museu não entrava no roteiro dos turistas que visitavam o Rio e, mesmo entre os cariocas, não é difícil encontrar quem nunca tenha visitado o local.


"Os motoristas de Uber que me levavam ou me buscavam lá sempre comentavam que iam ao Parque Municipal Quinta Da Boa Vista, mas que nunca tinham entrado no Museu. Os brasileiros não têm a mínima noção do que perderam", diz Cristina Branco, que desenvolveu o projeto do doutorado no Museu e hoje faz pós-doutorado no Smisthsonian Museum, em Washington DC.


Memórias


Pesquisadores do mundo inteiro visitavam o Museu para desenvolver suas pesquisas nos mais diversos campos do conhecimento, como antropologia, paleontologia, oceanografia, biologia e história. “Cada item na coleção fez parte da construção do que temos de conhecimento hoje. Muitos outros fariam parte se tivesse tido tempo de serem estudados”, ressalta Camila Messias.


“Embora vários alunos e ex-alunos meus não conhecessem o museu fisicamente, eles conheceram através de mim. Ao passar informações e conhecimento, de certa maneira todo mundo que passou pelo Museu é um apêndice, como se fosse um meio replicador de todo o conhecimento adquirido lá. E não vai ser mais possível fazer isso”, lamenta Weber.

Foto: Luiz Norberto Weber (primeiro da esqueda) participando como membro de uma banca de doutorado, em uma das salas dos Museu que não existe mais. (Acervo pessoal).

Quem visitou o Museu ao menos uma vez certamente tem alguma boa lembrança: o imponente prédio histórico, as exposições e as coleções científicas impressionavam os visitantes novos e não deixavam de encantar os velhos conhecidos.

Foto: Anaíra Lage.

“Andar no museu era um retorno ao passado, era gratificante poder andar por aquelas escadarias, corredores e adentrar os laboratórios, que infelizmente não existem mais... Aquele referencial físico que eu tinha do museu acabou”, diz Weber.


Colaboração: Gabrielle Souza

 

Sugestões de leitura: “Museu Nacional: De dinossauros nunca identificados a línguas extintas, o que a ciência perde com o incêndio” por Camilla Costa, BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/amp/brasil-45404257#click=https://t.co/dhfYG32wYT

"Hope emerges for Brazil museum specimens after devastating fire", por Reinaldo José Lopes, Nature. https://www.nature.com/articles/d41586-018-06192-9


"Orçamento para lavar carros de deputados é quase três vezes maior que o do Museu Nacional", por Afonso Benites, El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/04/politica/1536015210_491341.amp.html


 

Entrevistados:

Cristiana Castello Branco faz pós doutorado em sistemática e estuda esponjas de mar profundo. Fez graduação e mestrado na UFBA e doutorado no Rio de Janeiro. Passou 4 anos frequentando o Museu quase diariamente e fica feliz de ter levado os pais para conhecer o local e as coleções expostas.







Luiz Norberto Weber desenvolve pesquisas de taxonomia de anfíbios. Professor da UFSB, ele começou a carreira como estagiário do setor de paleontologia do Museu. Carioca, Weber mora em Porto Seguro (BA) mas ia ao Museu matar a saudade toda vez que visitava o Rio.




Camila Simões Martins de Aguiar Messias, é técnica de laboratório do Centro de Microscopia Eletrônica de Varredura do Departamento de Invertebrados do Museu Nacional e estudante de Biologia da UFRJ. Ela acredita que o incêndio foi um ataque a todos que fazem ciência e que poderia ter sido evitado. Ela trabalhava no Museu desde 2014.



Anaíra Lage trabalha com esponjas e defendeu o doutorado no Museu no último dia 31. A última visita à coleção ela fez em junho, na inauguração da exposição sobre os Corais e os 200 anos do Museu. "A ala inaugurada estava linda, cheia de detalhes nos quais era possível ver a dedicação e o carinho que a exposição foi pensada e montada para o público", lembra.






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