Para este texto de estreia para a sessão Ciências do Mar resolvi escrever sobre um tema que tem me fascinado muito nos últimos anos, desde quando comecei a trabalhar em meu projeto de doutorado. É muito comum alguém perguntar “Sobre o que é seu doutorado?” e a reação geral do estudante de pós é desconversar, falar o título do projeto (um nome gigante que quase ninguém entende) ou dar uma explicação superficial, pois “dá muito trabalho” explicar direito. Como esta sessão propõe justamente uma aproximação entre a academia e a sociedade, é por isso que neste post eu me proponho a explicar de forma simples, mas não simplista, uma parte do trabalho que desenvolvi durante o meu doutorado.
O meu grupo de interesse é o plâncton, mais especificamente o zooplâncton. Não estou falando do vilão do Bob Esponja, mas vale a pena conhecer um pouco mais sobre esses organismos mesmo assim. O zooplâncton compreende pequenos animais aquáticos (geralmente invisíveis a olho nu) tradicionalmente descritos como organismos que vivem “ao sabor das correntes”, porque eles não tem “força” suficiente para nadar contra as correntes, por conta de seu tamanho pequeno. Mas isso não quer dizer que esses bichinhos são preguiçosos, muito pelo contrário, muitos deles conseguem migrar verticalmente na coluna de água por muitos metros, às vezes centenas de metros.
O zooplâncton é muito importante nas famosas teias alimentares, e também é peça fundamental em outros processos importantes (assunto para outros posts). Estes organismos comem o fitoplâncton (que são a parte fotossintetizante do plâncton, são para os oceanos o que as árvores são para a floresta amazônica) e são comidos pelos peixes, que são comidos pelo homem e também pelas baleias. Então já viu, se não tem muito zooplâncton na área, “o mar não está pra peixe”, nem para nenhum outro organismo nos níveis tróficos superiores. Ou seja, vai faltar o salmão do sushi, e eu adoro comida japonesa.
Exemplo de teia trófica. Fonte: Fitoplâncton Uwe Kils/ Wikimedia Commons CC BY-SA 3.0.
Bem, se o zooplâncton é tão importante mediando essa transferência de biomassa e energia desde os produtores primários (fitoplâncton) até os níveis tróficos superiores (peixes, aves, baleias, homem), então precisamos entender essas relações de alimentação de forma mais profunda, certo? Pois bem, uma das regras de ouro nos oceanos é que os organismos sempre (ou quase sempre) se alimentam de organismos menores que ele próprio. Por isso tamanho é documento quando o plâncton está escolhendo o menu do jantar. Levando isso em conta, muitos pesquisadores estudaram o fluxo (passagem) de biomassa e energia ao longo dos níveis tróficos. Por exemplo, calcularam quanto do que o plâncton absorve durante o “jantar” é de fato passado para os peixes, aves e baleias que se alimentam desse mesmo plâncton. E essa informação aparentemente tão simples tem potencial para explicar um monte de coisas sobre nossos oceanos.
Mas como? Bem, se você medir o tamanho dos organismos, calcular seu peso e somar a biomassa em cada classe de tamanho, como no gráfico ao lado, você irá perceber que sempre existe mais biomassa acumulada nos organismos pequenos do que nos organismos grandes. Quando falo sobre biomassa acumulada estou me referindo a soma do peso de todos os organismos que pertencem a uma determinada faixa de tamanhos. Mas o que isso quer dizer? Quer dizer que para saciar a fome dos organismos grandes é preciso uma grande quantidade de organismos pequenos, pois precisamos nos lembrar que existe perda de energia durante cada refeição. Isso quer dizer que nem tudo que comemos é absorvido pelo nosso organismo e com o zooplâncton não é diferente.
Com base nessas informações foi desenvolvida uma teoria, chamada teoria do espectro de biomassa, que relaciona a forma dessa distribuição da biomassa ao longo das classes de tamanho (bem como índices matemáticos associados a essa distribuição) com propriedades dos ecossistemas. Eu acho simplesmente incrível poder associar um simples índice matemático com a eficiência da transferência de energia num ecossistema, com produtividade, com interações entre predador e presa e com a quantidade de níveis tróficos nos oceanos.
E o meu doutorado está fundamentado nessa teoria com nome intimidante (espectro não remete a algo fantasmagórico?), mas que na verdade é bem mais simples do que aparenta. Para conseguir meus dados embarquei em diversos cruzeiros oceanográficos coletando zooplâncton com uma rede como esta da foto abaixo. No laboratório eu escaneei as amostras utilizando um scanner a prova de água (chamado de ZooScan) e usei um software para obter imagens dos organismos, identificar, contar e medir de forma rápida e prática. Eu também aprendi a programar em linguagem R e Matlab para mandar o computador fazer todas essas contas para mim, pois a vida é curta e eu tenho outros hobbys além de ciência para me dedicar, como este blog por exemplo.
Rede simples de plâncton. Foto de Cat Marcolin com CC SA-BY 4.0.
Os resultados que encontrei tanto na costa de Ubatuba, SP quanto na região do banco de Abrolhos revelaram que os índices matemáticos associados à teoria do espectro de biomassa podem ser utilizados para identificar diferenças na comunidade do zooplâncton em relação à alterações sazonais (de acordo com as estações do ano) e às características locais (como estratificação da coluna de água, profundidade, proximidade da costa), respectivamente. Isso quer dizer que esses índices são úteis em programas de monitoramento dos ecossistemas oceânicos, especialmente porque são fáceis de serem calculados (se você tiver a tecnologia a seu dispor) e não necessitam da identificação das espécies, que costuma ser algo bem demorado quando se trata de plâncton.
Se você se interessou pelo assunto, minha tese de doutorado está acessível através deste link.
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