Tradução livre do artigo Stop using anecdotal evidence in conversations about gender, por Juliana Hipólito e Luisa Maria Diele-Viegas.
Deixem os dados guiarem as discussões sobre igualdade.
Ilustração de Caia Colla.
Em nossa experiência como duas cientistas mulheres brasileiras, nós já vimos alguns colegas, a maioria homens, se baseando em evidências anedóticas - alegações baseadas em observações pessoais, sem dados coletados de maneira sistemática - para concluir que sexismo não é um problema no ambiente acadêmico. Frases como “tem muitas mulheres no meu departamento” ou “minha superior é mulher” são usadas com frequência para justificar suas crenças de que não existe viés de gênero na ciência.
Alguns dos nossos colegas pesquisadores nos dizem que nossas reclamações sobre viés de gênero na academia são exageradas. Apesar disso, muitas mulheres experimentam diferentes formas de assédio, incluindo tentativas de coagir a uma atividade sexual ou, e comentários, gestos, e outros insultos que muitas vezes ameaçam nossa saúde mental. Quando Luisa Maria Diele-Viegas estava começando sua carreira, por exemplo, ela ouviu frases como:
"Não vou respeitar uma mulher de cabelo vermelho e tatuagem."
"Você não é merecedora dessa posição."
"Você não tem capacidade de escrever um projeto."
"Seu estudo é um desserviço para a área."
"Você está muito estressada, é falta de homem?"
e ainda,
"Você é como um rolo compressor, e isso é ruim para seus colaboradores."
Alguns sexismos são mais implícitos, mascarados como "preocupação” ou ainda refletindo pontos de vista bem estabelecidos culturalmente. Por exemplo, Juliana Hipólito já ouviu durante a sua carreira:
"Não te convidei para esse trabalho porque você tem um filho."
"Você realmente quer essa posição e ter menos tempo para estar com sua família?"
Sigam os dados!
Apesar de nossas experiências pessoais, estes exemplos sozinhos não são prova de um sexismo acadêmico persistente. Como cientistas, devemos sempre buscar evidências empíricas e não anedóticas para testar hipóteses. Existem evidências amplamente documentadas de discriminação no ambiente acadêmico que vão desde diferenças no salário até sub-representação em corpos editorais, comitês científicos e posições permanentes, especialmente as mais seniores.
De certa forma, é bom saber que nossas experiências refletem os dados: mulheres ainda são discriminadas nas ciências. Historicamente, isso resultou em um intenso aumento no número de mulheres que abandonam sua carreira - fenômeno conhecido como "leaking pipeline" (= tubulação com vazamento) , principalmente nos estágios mais avançados das carreiras. De acordo com o Relatório Científico da UNESCO (2021), as mulheres representam cerca de 45-55% dos graus de bacharel e mestre e 44% dos graus de doutores globalmente. Apesar disso, elas representam apenas 33,3% dos pesquisadores e 12% dos membros em academias de ciência ao redor do mundo, incluindo no Brasil.
Homens cientistas são também mais passíveis de colaborar com outros homens cientistas. Consequentemente, este viés de gênero também é visto nas publicações. Nas ciências biológicas, menos de 40% das publicações têm mulheres como primeiras autoras, e menos de 30% têm mulheres como últimas autoras ou autoras sêniores (ser a última autora significa ser a líder daquela pesquisa). No campo da ecologia e evolução, especificamente na nossa área de pesquisa, apenas 11% dos principais autores de publicações são mulheres. Esses dados destacam o sexismo acadêmico, desafiando a evidência anedótica de nossos colegas acerca da igualdade de gênero na ciência.
Humanos pensam em histórias, e as experiências pessoais acabam sendo os meios mais poderosos de argumentação do que simplesmente citar estatísticas secas. Apesar disso, aqueles que perpetuam o sexismo – sabendo ou não – e aqueles que buscam desmascarar isso devem lembrar dos dados: é lá que a história é de fato contada.
Como podemos mudar este cenário? Soluções incluem ter mais mulheres em posições de liderança, ter espaços acadêmicos neutros onde o assédio sexual pode ser denunciado e verificado, e estar sempre em busca de novos meios para evitar a discriminação na ciência.
Sobre as autoras:
Juliana Hipólito
Graduada em biologia pela UFBA com mestrado e doutorado pela mesma universidade. Professora visitante na UFBA. Professora e orientadora dos cursos de pós-graduação Inpa (Ecologia e Botânica) e UFBA (PPG Ecotav). Atua no campo da ecologia da polinização. Contato: juhipolito@gmail.com
Luisa Maria Diele Viegas
Doutora em ecologia e evolução e atualmente é professora e pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Federal de Alagoas. Sua pesquisa envolve a avaliação do impacto das ações do homem na biodiversidade, com enfoque em mudanças climáticas e vertebrados ectotérmicos terrestres. Também pesquisa os vieses implícitos e explícitos dentro da academia, considerando questões de gênero, raça, etnia, classe, sexualidade, pessoas com deficiência e suas intersecções. É líder climática, fundadora do projeto de divulgação científica Minha Amiga Cientista, uma das fundadoras do Fórum Clima Salvador, da rede Nordeste de Clima, da rede Kunhã Asé de mulheres na ciência e da rede de Mulheres na Zoologia. É consultora do projeto da UNESCO Girls in STEM and Digital Skills in Brazil, e integra a Organização para mulheres na ciência no mundo em desenvolvimento, também da UNESCO. Integra ainda a Comissão de Diversidade e Inclusão da Sociedade Brasileira de Herpetologia, o Comitê de Diversidade do Programa de Pós Graduação em Diversidade Biológica e Conservação dos Trópicos da UFAL e a Rede CoVida - Ciência, Informação e Solidariedade.
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