Por Beatriz Mattiuzzo
Monstros gigantes, que agarram, afogam e tiram pedaços habitam nosso oceano. Mas não são aqueles seres mitológicos das navegações...
Esses monstros modernos que nem sequer são vivos, mas tiram a vida de muitos, são equipamentos de pesca abandonados, descartados ou perdidos que vão continuar a realizar a função para que foram construídos: capturar animais. Muitas vezes, sem ninguém ver ou saber – e por isso o nome fantasma.
São redes, linhas, anzóis, espinhéis, armadilhas de covos, potes ou qualquer outro petrecho de pesca já inutilizado que vai parar no oceano – e viram um problema para fauna marinha, além de contribuírem significativamente para a poluição por plástico e prejudicarem a própria pesca.
Esse vídeo ilustra bem o problema, mas só assiste se vc achar que tá bem, tá? Pode servir de gatilho.
Vídeo cedido por Vinicius Jose Giglio Fernandes , pesquisador da UNIFESP, que registrou retirada de rede fantasma do Arquipélago de Alcatrazes em 07/12/2019.
Como esses equipamentos de pesca vão parar no mar?
Na maioria das vezes, por acidente. Imagina só: um barco pescando fica com a rede presa... Os pescadores irão tentar liberar a rede – pois também não querem perder o equipamento – mas ela pode rasgar e eles não conseguem recuperá-la. Essa rede que ficou lá vai virar um problemão, e o mesmo vale para armadilhas, linhas ou anzóis perdidos.
Anos atrás, quando a consciência ambiental era menor, os pescadores eram muito responsabilizados pelos petrechos e vistos apenas como vilões nessa situação. Atualmente, todo mundo já entendeu que a pesca fantasma é ruim inclusive para a própria pesca – porque mata animais que poderiam ser comercializados pelos próprios pescadores. Então é importante a gente entender que, na grande maioria dos casos, é um acidente de trabalho, parte da realidade da pesca, que prejudica a todos.
Mas há exceções: a pesca ilegal também contribui muito para a pesca fantasma. Nesses casos, para evitar serem descobertos, os barcos podem tentar descartar os petrechos de pesca no mar. Ou, se tiverem um acidente, não vão informar às autoridades. Nesses casos, precisamos de mais fiscalização e maneiras de penalizar esses crimes.
O que acontece com os animais?
O contato com os equipamentos de pesca fantasma pode acontecer de várias formas, e essa imagem resume bem isso:
Representação esquemática de diferentes impactos que os animais marinhos podem sofrer por petrechos fantasmas, retirado de Sumário Executivo – Maré Fantasma - World Animal Protection.
Como é que a pesca prejudica a própria pesca?
A pesca fantasma prejudica a pesca comercial pois aprisiona e mata uma quantidade enorme de espécies marinhas que poderiam ser capturadas e comercializadas de forma regular. Além disso, é uma ameaça à segurança dos próprios pescadores e seus barcos, podendo causar grandes prejuízos. As redes podem ser perigosas até para os banhistas, como o que aconteceu nesse terrível acidente fatal com um surfista que se prendeu em uma rede abandonada recentemente (https://esporte.ig.com.br/maisesportes/surfe/2020-06-18/surfista-morre-apos-ficar-preso-em-rede-de-pesca-no-rio-de-janeiro.html).
Se algum dia você encontrar um animal marinho preso em redes de pesca, acione os órgãos ambientais responsáveis e tome muito cuidado. Apesar de dar vontade de ajudar, pode ser bem perigoso, pois você também pode se enrolar e o animal te puxar. Em alguns locais do mundo, equipes profissionais realizam esse trabalho, como na Sicília. Vale a pena acompanhar o trabalho desses profissionais no instagram @ghostdivingorg - https://www.instagram.com/ghostdivingorg/
Qual a dimensão do problema?
A pesca fantasma é um problema global. Os registros de interação de petrechos fantasmas com animais se concentram principalmente nos peixes, crustáceos e na megafauna marinha como tartarugas, leões-marinhos, focas, golfinhos, baleias e outros – e podem ser responsáveis por até 30% do declínio populacional de algumas dessas espécies, como indica o relatório técnico da FAO sobre o assunto em 2016.
Além disso, os petrechos são de plástico – e vão lentamente se fragmentando e liberando microplásticos no ambiente. Ainda assim, podem durar séculos, gerando uma cadeia cíclica: animais ficam que presos acidentalmente atraem outros animais, especialmente os detritívoros (animais que se alimentam de restos orgânicos). Estes animais também acabam emaranhados nos petrechos, levando-os à morte e atraindo mais indivíduos. Esse ciclo só se encerra quando o petrecho fantasma é retirado ou degradado.
Alguns dados da pesca fantasma no Brasil:
Faz apenas algumas décadas que acordamos para o problema da pesca fantasma. Segundo o relatório Maré Fantasma da World Animal Protection, lançado no final de 2018, os primeiros estudos do tema no Brasil são de 2009 e apenas três estados (São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro) apresentam estudos e ações consistentes no combate à pesca fantasma.Mas há relatos de episódios de pesca fantasma em 12 dos 17 estados costeiros do país, inclusive nos rios do Amazonas.
Se formos seguir padrões de estudos internacionais, que mostram uma perda de cerca de 2% dos equipamentos de pesca em equipamentos fantasma, e que o Brasil produz e importa anualmente 6.600 toneladas de redes de pesca, seriam 200 toneladas de rede por ano, ou mais de 500 quilos por dia!
Montes de redes para reparos em Angra dos Reis – RJ. Algumas serão costuradas, outras tem que ser descartadas. Foto por Beatriz Mattiuzzo - CC BY SA 4.0.
O que fazer?
Para ajudar a resolver esse problemão que nós mesmo criamos, há alguns caminhos. Um passo óbvio é frear a pesca ilegal, que já é problemática por outros motivos. Outros passos importantes são marcar as redes, incentivar os relatos de petrechos perdidos e os esforços de recuperação, sempre considerando-os como acidentes de trabalho, e sem culpar os pescadores.
Alguns petrechos, como redes, não têm grande valor e por isso alguns pescadores não se motivam a buscar recuperá-las. Por isso outro caminho importante é tornar atrativo para esses profissionais devolverem as redes que não têm mais utilidade.
É isso que algumas novas empresas buscam, como a Marulho, uma iniciativa criada por oceanógrafos (inclusive a que está escrevendo esse texto!). Marulho quer dizer barulho do mar, e a missão dessa marca é desenvolver soluções ao plástico de uso único junto com divulgação científica. Um dos jeitos de fazer isso é pegando redes de pesca descartadas e transformando-as em saquinhos de hortifruti, costurados por locais da Ilha Grande - RJ. Assim, ajuda-se a dar um destino ao plástico já existente, evitar a pesca fantasma, não gerar mais plástico no mercado e empoderar uma comunidade tradicional!
Esquema de uma Redeco, produto comercializado pela Marulho que dá destino a essas redes! Arte: Beatriz Mattiuzzo - CC BY SA 4.0.
Adquirir produtos assim é uma forma de, no âmbito individual, contribuir para a solução do problema. Então se você se interessou pelas redecos, clica aqui . Outros jeitos são tomando cuidado para não financiar a pesca ilegal e compartilhando esse texto, pra mais pessoas ficarem sabendo!
Referências ou sugestão de leitura:
FAO Fisheries and Aquaculture Technical Paper (FAO). 2016. Abandoned, lost or otherwise discarded gillnets and trammel nets. Volume único: 140 páginas.
World Animal Protection (WAP) 2018. Fishing’s phantom menace. Volume único: 33 páginas.
Sobre a autora:
Beatriz Mattiuzzo
A Bia se apaixonou pelo mar mergulhando, fez oceanografia na USP - São Paulo, e quando se formou em 2018 resolveu sair pelo mundo por um ano trabalhando como voluntária em instituições de pesquisa. Nesse período aprendeu muito sobre educomunicação e ao voltar foi trabalhar temporariamente em Ilha Grande. Mas se apaixonou, ficou por lá e fundou a Marulho - uma empresa que busca divulgar a cultura oceânica junto com soluções para o plástico de uso único. Atualmente está começando um mestrado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em Práticas de Desenvolvimento Sustentável, trazendo o lado da ciência para o projeto de reutilização de redes de pesca que desenvolve com os locais da Ilha Grande.
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