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Plástico e COVID-19: resultados de uma crise gerada por excessos

Atualizado: 4 de set. de 2023

Por MARina T. Botana


Historicamente observamos que as grandes crises da humanidade foram comumente geradas por escassez (falta de água, falta de comida, falta de recursos energéticos). Porém, hoje em pleno ano 2020, presenciamos uma crise provocada por excessos e pela disparidade da relação do ser humano com os seus semelhantes na vida em sociedade e também com a natureza. Excesso de exploração de recursos, excesso de consumo, excesso de lixo, excesso de poluição e egoísmo...


Ilustração por Yonara Garcia.


A pandemia da COVID-19 pegou todo mundo de surpresa. Do dia para a noite os cuidados com higiene e limpeza tiveram que ser redobrados. O uso de produtos descartáveis, em sua grande maioria feitos de plástico, como máscaras e luvas cresceu. Imensuráveis foram os investimentos feitos no início da cadeia produtiva destes insumos, afinal as novas necessidades eram urgências sanitárias e humanitárias. Sabemos da importância desses produtos na contenção do coronavírus, porém, nada se fez para melhorar a destinação final de todo esse novo lixo produzido. Infelizmente, não só no Brasil, mas também em outros lugares do mundo observamos a ausência ou extrema ineficiência nas políticas públicas de manejo e descarte de resíduos sólidos comuns e hospitalares. Este problema assombra o oceano já há muitas décadas, pois o destino final da maioria do nosso lixo, seja de maneira direta ou indireta, acaba sendo o mar. Os equipamentos de proteção individual (EPIs) descartados nos últimos meses estão obedecendo a regra: praias, baías, recifes, todos cada vez mais repletos de máscaras, luvas e outros objetos descartáveis, tudo feito de plástico.


Luva e máscara encontradas no litoral de Santa Catarina, Brasil. (Foto por Gerson Fernandino com licença CC-AS-BY 4.0.).


A diminuição na demanda por óleo e gás durante a pandemia reduziu as taxas de reciclagem globais e, a produção de novos plásticos ficou ainda mais barata do que comprar os produtos reciclados. As próprias empresas de óleo e gás divulgaram uma nota dizendo que a produção de plásticos poderia ser a salvação para manter os lucros e compensar as perdas geradas pela diminuição da demanda de combustíveis (Fonte: OilPrice.com). Um estudo lançado em junho deste ano estimou que desde março 129 bilhões de máscaras e 65 bilhões de luvas estejam sendo descartadas no oceano todos os meses. Quando pensamos nas quantidades totais de plástico então, este número é ainda mais absurdo: 8 milhões de toneladas por dia, o equivalente a despejar um caminhão cheio de lixo por minuto, todos os dias! Dá pra imaginar? Em Singapura, desde o início da pandemia 1.400 toneladas de plástico adicionais provenientes somente das entregas de comida por delivery são despejadas nos oceanos todas as semanas. Esta quantidade absurda de lixo foi produzida pelos seus 5.7 milhões de residentes. No Brasil, essas informações sequer foram estimadas. Se fizermos uma estimativa proporcional à quantidade de pessoas considerando que os hábitos de consumo nas grandes metrópoles tendem a ser semelhantes, só em São Paulo com 44 milhões de habitantes podemos estar produzindo por volta de 11 mil toneladas extras de lixo plástico todas as semanas! A falta de políticas públicas de monitoramento dificulta o levantamento dos dados. Pouco podemos falar sobre aquilo que não sabemos. Como podemos convencer os outros a preservar o que não se conhece? Felizmente, instituições não governamentais têm feito a divulgação do que vem acontecendo no litoral do sudeste nos últimos meses. O Instituto Mar Urbano, que faz o monitoramento da baía de Guanabara no Rio de Janeiro revelou imagens impactantes mostrando quantidades absurda de EPIs flutuando na baía. Em São Paulo, o Instituto Argonauta encontrou um pinguim de Magalhães morto com uma máscara N-95 em seu estômago e ressaltou que a morte do animal foi atrelada à ingestão acidental do EPI. Outra preocupação sobre a interação de máscaras e organismos marinhos e costeiros é o perigo de emaranhamento. Como mostrado pela ONG Australian Seabird Rescue, a simples ação de cortar as tiras das máscaras antes de descartá-las pode evitar mortes.


“Máscaras ao Mar” produzido pelo Instituto Mar Urbano


Necrópsia feita pelo Instituto Argonauta do corpo de um pinguim de Magalhães encontrado no litoral paulista. Na imagem inferior vemos uma máscara N-95 no estômago do pinguim. A ingestão acidental levou a morte do animal (Fonte: Comunicação Instituto Argonauta com licença CC-AS-BY 4.0.).


Triste acreditar que em um país com imensurável biodiversidade como o nosso, com mais de 8 mil quilômetros de linha de costa, quase não tenha programas de monitoramento de lixo no mar e nas praias e que também não tenha ainda políticas efetivas em prática sobre o descarte de resíduos sólidos. Pior ainda é achar normal que esta responsabilidade seja transferida para a sociedade civil. Toda a verba de orçamento do Ministério Meio Ambiente (MMA) representa somente 0.06% dos gastos públicos no Brasil. Neste ano, já estamos em novembro e somente 55% do orçamento aprovado para o ano inteiro foi gasto (Fonte: http://www.portaltransparencia.gov.br/). Quando chamados de negligentes, os representantes alegam “não ter verba” para a implementação dos programas de monitoramento. A escassez de verba é uma realidade, agora a negligência de não utilizar o que já está aprovado é puro sinal de distopia, ou seja, de autoritarismo camuflado. Tudo isso inviabiliza a criação de soluções para os problemas reais que enfrentamos agora e que serão ainda piores para as gerações futuras. Problemas alarmantes para a realidade brasileira, mas que também estão impregnados em todo o mundo por conta do modelo de desenvolvimento. Se é que podemos mesmo chamar tudo isso de desenvolvimento, uma vez que os principais pilares de sustentação são o crescimento econômico, consumo e enriquecimento em detrimento de qualidade de vida, saúde do meio ambiente e repartição de recursos.


“Um sistema em que o eixo de motivação se limita ao lucro, sem precisar se envolver nos impactos ambientais e sociais, fica preso na sua própria lógica. Tudo tem a ganhar com a extração máxima de recursos naturais e externalização de custos”, já dizia o economista Ladislau Dowbor. As crises ambiental e sanitária causadas pela COVID-19 são primeiramente, uma crise do próprio modelo de excessos. A roda de produção e consumo precisa girar a qualquer custo obedecendo ao ciclo de reprodução do capital, independente dos impactos ambientais e desigualdades sociais agravadas por este processo. Neste sistema, “quanto mais, melhor”. Dito isso, eu me pergunto até que ponto a implementação de programas de monitoramento e descarte de lixo plástico, ainda que globais, seriam realmente efetivos dentro dessa diretriz de excessos e de consumo desenfreado. Esta e quaisquer outras revoluções ambientais e sociais precisam vir acompanhadas da quebra na lógica dessas distopias enraizadas no sistema. Pouco adianta pensar em políticas de sustentabilidade que não venham acompanhadas em frear a lógica de consumo. Repensar, reduzir e reutilizar antes de reciclar...


A COVID-19 e todas as crises ambientais e socioeconômicas que vieram atreladas e/ou foram agravadas por ela são consequência das mazelas intrinsecamente atreladas à lógica de excessos do nosso atual modelo de “desenvolvimento”. A crise sanitária vai passar, porém os EPIs e plásticos descartados na natureza se perpetuarão por centenas de anos. Enquanto a lógica do sistema não for alterada será uma simples questão de tempo até novos vírus aparecerem. O meio ambiente vai continuar sendo explorado de forma insustentável e as desigualdades globais só ficarão cada vez mais graves. Como cientista da área ambiental, acredito que tenho pouca propriedade para discutir com mais profundidade questões sociais, econômicas e políticas. Entretanto, a pandemia despertou meu interesse em outras áreas do conhecimento. Esse modelo de “desenvolvimento” defasado cumpre muito bem o seu papel em formar excelentes profissionais excepcionalmente técnicos em suas respectivas áreas, mas que, muitas vezes, deixam a desejar em questões sociais, éticas e morais. Participar deste todo é dever e responsabilidade de qualquer ser humano que viva em sociedade. Se existe um outro modelo plausível de desenvolvimento e/ou uma solução para mitigar os excessos e desenvolver políticas públicas mais efetivas para os problemas reais que enfrentamos, hoje eu não sei. Mas acredito que a integração de diferentes visões e ampla discussão sobre o assunto é fundamental para desenvolvermos novas perspectivas e não perdermos a esperança de construir um mundo melhor...


 

Para quem gostou do texto, seguem algumas sugestões de leitura:


A. Kimini, “How the COVID-19 plastic boom could save the oil industry,” OilPrice.com (2020).

Adyel, Tanveer M. "Accumulation of plastic waste during COVID-19." Science 369, no. 6509 (2020): 1314-1315. https://science.sciencemag.org/content/369/6509/1314


Livro “A era do capital improdutivo” – Ladislau Dowbor, 2 ͣedição – dowbor.org



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