Por Andrei Polejack
Ilustração por Alexya Queiroz
Adoro essa estória. Durante a Guerra Fria, lá nos idos dos anos 80 quando muitos da minha geração achavam que o mundo ia acabar com o apertar de um botão vermelho, um submarino militar soviético encalhou nos recifes da costa da Suécia, no Báltico. Os suecos estavam em pânico, sentindo-se monitorados, ameaçados e dragados para a guerra. Aumentaram o monitoramento subaquático por hidrofones, ativaram os canais diplomáticos e ficaram paranóicos com atividades militares não autorizadas. A União Soviética negou qualquer atividade e se isentou de prestar mais esclarecimentos.
Localização do Mar Báltico. Fonte: Wikimedia com licença CC SA BY 3.0
Anos se passaram, a Guerra Fria chegou ao fim, e não houve uma hecatombe atômica iniciada pelo botão vermelho. No entanto, os hidrofones continuaram captando sinais sonoros de motores de submarinos em atividade na região. A paranoia cresceu e ninguém ainda se sentia seguro. Os soviéticos juraram de pé junto que não mantinham atividades não autorizadas no Báltico.
Sem resposta clara e com uma hiper pulga atrás da orelha, os militares suecos pediram arrego para os pesquisadores, tudo em sigilo estratégico de defesa nacional. Dois pesquisadores suecos, Wahlberg & Westerberg, então analisaram os padrões sonoros e construíram várias hipóteses a serem testadas. Uma delas envolvia algum tipo de ruído natural, não descrito antes e possivelmente produzido pelos organismos locais.
Foi assim que descobriram, em 1996, que os arenques, peixes muito comuns na região Báltica, que se reúnem em cardumes de milhares de indivíduos, possuem uma ligação entre a bexiga natatória (órgão que auxilia os peixes ósseos na flutuabilidade ) e seu ânus capaz de produzir bolhas que seriam muito similares ao ruído captado pelos hidrofones. E foi assim que um estudo científico sobre pum de peixe evitou uma guerra entre Suécia e União Soviética.
Imagem ilustrativ do Arenque. Fonte: NY Public Library em domínio público
Essa anedota fantástica sempre me ajuda a pensar fora da caixinha sobre a influência da ciência nas relações internacionais. Para mim, sempre foi fácil reconhecer que a ciência era necessária para elucidar aspectos essenciais dos processos de negociação internacional sobre nosso oceano, mas isto nem sempre é claro para todos os envolvidos.
Domínio público
Há muitos exemplos dessa relação: foi a ciência que nos informou sobre a perda de habitats e serviços ecossistêmicos em consequência das ações do homem, bem como nos mostrou porque os corais têm se branqueado como resultado da acidificação marinha e por aí vai. Igualmente fácil, era reconhecer que por meio da ciência muitos países se aproximaram em projetos conjuntos, abrindo um diálogo fluido mesmo quando experimentavam conflitos em outras áreas, como, por exemplo, a cooperação científica entre EUA e Cuba, no Chipre, e nas regiões polares. Finalmente, enquanto à frente da área de oceano, Antártica e geociências do MCTI, percebi muitos investimentos à pesquisa serem direcionados a temas aos quais a diplomacia clamava por informações. Como exemplo posso citar o atual regime em negociação sobre a biodiversidade além das jurisdições nacionais, o BBNJ, que fez diplomatas entenderem a diferença entre in vivo, in situ e in silico.
A esses três aspectos que eu ilustrei anteriormente, ou seja, ciência subsidiando a tomada de decisão internacional, projetos de pesquisa aproximando países apesar de conflitos existentes e a diplomacia trazendo investimentos à ciência, são, segundo um relatório da Royal Society de Londres e a AAAS de 2010, as três categorias de Diplomacia Científica: ciência na diplomacia, ciência para a diplomacia e, diplomacia na ciência.
O pum de peixe me tira dessas caixinhas também, porque, apesar de não ser um caso clássico de diplomacia científica, me puxa a pensar que a realidade é muito mais complexa que qualquer categoria que a gente crie.
Foi assim que eu resolvi me afastar da função de burocrata para voltar pra Academia (momentaneamente, claro!) e entender o que significava esse movimento político e científico chamado Diplomacia Científica para a governança do oceano. Ainda estou em processo de entender isso tudo e a coisa só complica, mas recentemente publiquei um artigo na revista científica Frontiers in Marine Science contextualizando e exemplificando como a Diplomacia Científica é, na verdade, um processo fundamental para a governança do oceano.
Fiz isso logo cortando na carne de qualquer um que trabalha nessa área: fui direto pra Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, a constituição do oceano. A Convenção estabelece os direitos e deveres dos países signatários em relação ao uso, conservação e exploração do oceano e, mais importante, estabelece espaços marinhos de distintas jurisdições aos quais cabem tais direitos e deveres.
A negociação da Convenção, que demorou mais que a Guerra Fria para ser aprovada, teve uma base técnico-científica enorme, com resultados de pesquisa informando os itens da agenda e impactando as posições adotadas pelos países. Por exemplo, Sam Robinson, pesquisador britânico, discute que foi o temor de países em desenvolvimento pelos possíveis usos de tecnologias para exploração dos minerais do leito marinho (tecnologias que até hoje não dispomos) que determinou a discussão sobre o regime para a Área (leito, solo e subsolo marinho além da jurisdição dos países) na Convenção. A desigualdade entre desenvolvidos e em desenvolvimento também fez com que a Convenção adotasse mecanismos de trocas de tecnologia e desenvolvimento de capacidades, o que eu e Luciana Coelho, querida brazuca parceira de doutorado aqui na Suécia, exploramos em outro artigo, publicado na outra revista da Frontiers, mas com um olhar contemporâneo e focado na América Latina e Caribe.
O Brasil é um gigante em pesquisa oceânica no Atlântico Sul e olha que ainda estamos longe de termos o mínimo necessário para jogar no mesmo time dos desenvolvidos. Porém, temos sim capacidades em termos de pessoal e infraestrutura que poucos possuem na região. Por isso, nos envolvemos em um processo de diplomacia científica oceânica com europeus, sul-africanos, americanos, canadenses, argentinos e cabo-verdianos: a Aliança de Pesquisa para Todo o Atlântico (All-Atlantic Ocean Research Alliance). Digo “diplomacia científica oceânica” porque envolveu muitos pesquisadores e governos, mas também iniciativa privada e outros setores sociais, aplicando a ciência na diplomacia e a diplomacia na ciência. A Aliança se baseia em três processos diplomáticos sucessivos, informados pela ciência e com objetivos de elevar a compreensão do oceano e o bem estar de nossos cidadãos.
Em outro artigo recente, eu e minhas queridas co-autoras, Sigi Gruber e Mary Wisz, descrevemos esse processo passo-a-passo e analisamos algo essencial para se entender diplomacia científica: os interesses nacionais (políticos, econômicos, sociais e de poderio) que impulsionam o uso da ciência da diplomacia. Discutimos o poder brando (soft power, conceito de Joseph Nye) que a ciência exerce em atrair e seduzir outros países aos seus valores nacionais, meio que como a cenoura na frente do burro.
A Aliança e a Década da ONU da ciência oceânica para o desenvolvimento sustentável são meus casos de estudo. A Década, um processo diplomático no âmbito da ONU, tem como base a promoção da ciência e seu uso para a tomada de decisões a favor da sustentabilidade ambiental, um caso de mão cheia para diplomacia científica oceânica. Espero que esse meu trabalho, além de me dar um tesão enorme em desvendar o assunto, sirva para que o Brasil possa melhorar seu posicionamento em negociações internacionais mais justas e paritárias, além de melhorar o processo nacional de influência da ciência na tomada de decisões sobre o oceano, tomando esses dez anos que a Década nos apresenta pela frente.
Referências ou sugestão de leitura:
Nye, J. S. (2017). Soft power: the origins and political progress of a concept. Palgrave Communications, 3(1), 17008. https://doi.org/10.1057/palcomms.2017.8
Polejack, A. (2021). The Importance of Ocean Science Diplomacy for Ocean Affairs, Global Sustainability, and the UN Decade of Ocean Science. Frontiers in Marine Science, 8(March). https://doi.org/10.3389/fmars.2021.664066
Polejack, A., & Coelho, L. F. (2021). Ocean Science Diplomacy can Be a Game Changer to Promote the Access to Marine Technology in Latin America and the Caribbean. Frontiers in Research Metrics and Analytics, 6(April), 34–36. https://doi.org/10.3389/frma.2021.637127
Polejack, A., Gruber, S., & Wisz, M. S. (2021). Atlantic Ocean science diplomacy in action: the pole-to-pole All Atlantic Ocean Research Alliance. Humanities and Social Sciences Communications, 8(1), 52. https://doi.org/10.1057/s41599-021-00729-6
Robinson, S. (2020). Scientific Imaginaries and Science Diplomacy: The Case of Ocean Exploitation. Centaurus, 1–21. https://doi.org/https://doi.org/10.1111/1600-0498.12342
Wahlberg, M., & Westerberg, H. (2003). Sounds produced by herring (Clupea harengus) bubble release. Aquatic Living Resources, 16(3), 271–275. https://doi.org/10.1016/S0990-7440(03)00017-2
Sobre o/a autor/a:
Andrei Polejack é biólogo e mestre em Ecologia pela UnB e agora doutorando pelas ciências sociais na World Maritime University, Suécia. É analista sênior do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações onde ocupou por muitos anos a função de Coordenador-Geral de Oceanos, Antártica e Geociências. @AndreiPolejack
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