Minha experiência com fisiologia de tartarugas
Por Tábata Cordeiro
Minha paixão pelas tartarugas marinhas começou em 2003, quando minha família se mudou do Rio de Janeiro para Salvador e conheci o Projeto Tamar. Anos depois, comecei a graduação, em biologia, claro! Agora tinha que dar um jeito de estudar esses animais tão encantadores e intrigantes.
Iniciei um estágio no Laboratório de Fisiologia Animal (LAFISA/UFBA) em 2008. No dia em que fui conversar com o meu futuro orientador, o Prof. Dr. Wilfried Klein, disse a ele que tinha interesse em trabalhar com tartarugas. Foi assim que comecei a trabalhar com a morfologia e a fisiologia da respiração desses animais. Essa temática é a linha de pesquisa do meu orientador, a qual me interessou muito. Lembro que, em uma conversa com outro professor da faculdade, quando eu comentei que tinha começado esse estágio, ele brincou dizendo que não tinha mais o que saber de novidade sobre quelônios. Senti-me desafiada. E como eu gosto de ser desafiada, resolvi persistir!
Durante a faculdade aprendi que as tartarugas marinhas fazem parte de um grupo de animais conhecido como Testudines, Testudinata ou Chelonia, que incluem também os jabutis (animais terrestres) e os cágados (animais que habitam ambientes de água doce). Por isso, muitas vezes vemos o uso do nome quelônios para denominá-los. Os quelônios, animais que pertencem à classe dos répteis, são fáceis de serem reconhecidos, devido à anatomia pouco diversa do grupo. Testudines apresentam um corpo envolto por um casco, dorsalmente chamado de carapaça (fundida às costelas e à coluna vertebral) e ventralmente chamado de plastrão (fundido às clavículas e interclavícula).
No entanto, tive que adiar o sonho de trabalhar com tartarugas marinhas. As espécies que ocorrem no Brasil são consideradas vulneráveis ou ameaçadas de extinção e, por esse motivo, não são permitidas manipulações em laboratório e este seria meu ambiente de trabalho. Iniciei os meus estudos sobre a respiração dos quelônios no meu mestrado, investigando aspectos gerais da ventilação e taxa metabólica em duas espécies de água doce. Respiração bimodal
Vamos abrir um parênteses agora para uma breve explicação sobre o assunto do meu trabalho! A ventilação pode ser descrita como a movimentação de ar ou água para dentro e para fora de estruturas especializadas no transporte e trocas de oxigênio e dióxido de carbono entre o animal e o meio externo, como os pulmões. A quantidade de oxigênio absorvida por cada organismo vai determinar a sua taxa metabólica, ou seja, a quantidade de energia consumida.
Os quelônios são animais que realizam ventilação intermitente, ou seja, eles intercalam momentos ventilatórios, uma expiração seguida da inspiração, com momentos não ventilatórios, a apneia. Essa característica tem implicações na taxa metabólica desse grupo de animais, sendo observado que os quelônios têm uma taxa metabólica que pode ser bem menor quando se comparado aos mamíferos de tamanho correspondente. Fecha parênteses!
Voltando ao meu trabalho, observei que uma das espécies que investiguei, Phrynops geoffroanus, apresentou a taxa metabólica muito baixa, quando comparada a outros répteis, devido ao baixo nível de oxigênio que consomem. A partir desse resultado, propus um projeto de doutorado para investigar questões comportamentais, morfológicas e fisiológicas associadas com a respiração bimodal em P. geoffroanus. A respiração bimodal pode ser definida como a capacidade de um animal realizar trocas gasosas através dos meios aéreo e aquático.
O simpático P. geoffroanus (Fonte: Tábata Cordeiro com licença CC SA-BY 4.0).
Partindo do pressuposto que P. geoffroanus tem uma das menores taxas metabólicas entre os quelônios, quais seriam as implicações comportamentais e morfológicas e fisiológicas desse parâmetro observado? Dessa forma, a pergunta central do trabalho foi “P. geoffroanus realiza as trocas gasosas por outras estruturas além dos pulmões? Ou seja, realiza respiração bimodal? Se sim, quais seriam as estruturas responsáveis por essas trocas?”
Spoiler: o interessante, ao final desse processo, é que a minha hipótese de trabalho foi rejeitada. Os resultados do meu doutorado não indicam que a espécie realiza respiração bimodal! Ou então, essas trocas não são proporcionalmente adequadas para a manutenção das necessidades metabólicas básicas da espécie. Dessa forma, P. geoffroanus obtém oxigênio primariamente pelos pulmões. Mas vamos ver como cheguei até lá.
Mudanças
Trabalhar com quelônios envolveu superar MUITOS desafios. O primeiro deles era como ter acesso a esses animais: fazer coletas de campo e organizar toda a estrutura em torno desse trabalho, ou então ter acesso a esses animais por meio de parcerias com algum zoológico e correr atrás de toda a documentação possível e impossível? Escolhi a segunda opção e posso dizer que aprendi bastante em termos de relações interpessoais e a lidar com questões burocráticas. O segundo desafio diz respeito à manutenção dos animais em um ambiente artificial. Quando os animais estão sob os nossos cuidados precisamos saber como mantê-los saudáveis: alojamento, alimentação, temperatura do ar e da água, ficar atento a qualquer mudança de comportamento. É essencial ter o contato de um veterinário de animais silvestres para tirar qualquer dúvida.
Além dos desafios de se trabalhar com os quelônios, estão as dificuldades de trabalhar como pesquisadora (e no Brasil). Tive que abrir mão de ficar perto de pessoas que eu amo porque mudei de cidade para realizar o meu mestrado e doutorado, e a fase de adaptação dessas mudanças envolve questões que vão além de estudar e fazer experimentos. É muito difícil conciliar a vida profissional com a particular quando se está imerso em um projeto em que se deposita tanta energia.
Quase tudo mudou entre a escrita do projeto e a execução do trabalho! Fiz e desfiz parcerias, acrescentei e tirei propostas do projeto, tive que aprender novas técnicas, como manipulação de diferentes drogas para alcançar analgesia e anestesia de quelônios, práticas cirúrgicas para canulação de vasos sanguíneos para coleta de material para análises sanguíneas, técnicas de análises bioquímicas, morfológicas, entre outras. Fiz algumas adaptações por falta de equipamentos ou de tempo.
Para chegar à conclusão de que P. geoffroanus não apresenta respiração bimodal, fiz análises comportamentais, morfológicas e fisiológicas, testando a hipótese de que estruturas como a pele, a cavidade bucofaringeal (popularmente conhecida como boca) e/ou as bolsas cloacais (estruturas anexas à cloaca, presente somente em algumas espécies aquáticas de quelônios) seriam responsáveis pelas trocas gasosas entre o ambiente aquático e os animais. Ao final, ao contrário do que era esperado, observei que não houve mudanças comportamentais quando diferentes áreas do corpo dos animais eram isoladas do meio aquático; as análises morfológicas foram pouco indicativas em relação à presença de características que pudessem classificar essas estruturas como locais de trocas gasosas (como a pequena distância de difusão) e os resultados bioquímicos dos experimentos fisiológicos não apresentaram diferenças quando os animais foram expostos a ambientes aquáticos com maior ou menor concentração de oxigênio.
A partir desses resultados, algumas hipóteses foram levantadas: 1) P. geoffroanus pode apresentar tolerância à hipóxia e anóxia. Essa hipótese foi levantada por Hsia e colaboradores (2013), que argumentam que a tolerância à hipóxia e anóxia seria uma característica provinda desde o Triássico e Jurássico, quando linhagens de quelônios aquáticos daquela época estavam expostas a ambientes aquáticos hipóxicos e anóxicos, devido à alta densidade da vegetação e alta demanda oxidativa biológica, e do baixo teor de oxigênio atmosférico, que supostamente estava em torno de 15%; 2) P. geoffroanus seria capaz de diminuir o consumo de energia, o hipometabolismo. Os pesquisadores Hochachka e Lutz (2001) apontaram que essa característica pode ser um importante mecanismo para a manutenção da vida desses animais, sem que haja necessidade de deslocamento até a superfície para realizarem trocas gasosas aéreas com tanta frequência.
Toda essa experiência e aprendizado me fizeram perceber quais locais eu quero ocupar na minha carreira profissional. Eu quero continuar trabalhando com pesquisa e ensino, promovendo a aproximação da ciência com a sociedade. Eu quero compartilhar conhecimentos e valores, e dizer para crianças e jovens, independentemente de gênero, raça ou classe, que elas podem sim estudar, escolher o que elas querem ser, produzir e compartilhar conhecimento.
Tábata discute os resultados do seu trabalho em um evento científico (Fonte: Tábata Cordeiro com licença CC SA-BY 4.0).
Referências:
Hsia C. C.; Schmitz, A.; Lambertz, M.; Perry, S. F.; Maina, J. N. (2013). Evolution of air breathing: Oxygen homeostasis and the transitions from water to land and sky. Comprehensive Physiology, 3, 849–915. DOI: 10.1002/cphy.c120003
Hochachka, P. W.; Lutz, P. L. (2001). Mechanism, origin, and evolution of anoxia tolerance in
animals. Comparative Biochemistry and Physiology Part B: Biochemistry and Molecular Biology, 130, 435–459. DOI: https://doi.org/10.1016/S1096-4959(01)00408-0
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