Ilustração: Lidia Paes Leme
No finalzinho de 2020, fui convidada para falar sobre minha pesquisa por uma estudante de pós-graduação de um dos melhores institutos de oceanografia do mundo, o Scripps Institution of Oceanography. No momento em que recebi o convite eu fiquei muito animada, mas não precisou nem de 5 minutos para eu ser arrebatada com uma sensação muito familiar, descrita para pessoas que sofrem com a síndrome do impostor. Alguns dos pensamentos foram: “O que é que eu vou falar?”, “Eu tenho tão poucas publicações”, “Mas eu nem tenho liderança em pesquisa”, entre outras coisas… E foi daí que eu decidi que deveria mostrar a “big picture”, ou seja, eu falaria não só da minha ciência, mas também das minhas atividades de extensão com o Bate-Papo com Netuno. Quando decidi isso, meu coração se encheu de alegria e fiquei mais confiante, porque eu tenho muito orgulho dessa plataforma de divulgação científica. Aqui eu me sinto realmente útil.
Mas peraí! Por que eu me sinto útil ao falar do Bate-Papo com Netuno, mas me sinto insegura ao falar sobre a ciência à qual venho dedicando os últimos 14 anos da minha vida?
Em vários sites da internet você vai encontrar informações sobre como reconhecer se você é acometida pela síndrome do impostor. Inclusive, na maioria deles tem uma lista de sentimentos, que você usa para verificar se se aplicam a você. Mas lembre-se: você não deve se auto-diagnosticar ou se medicar sem a orientação de um profissional. Vamos lá:
Eu tenho receio de dar a impressão de ser mais competente do que realmente sou.
Eu frequentemente tenho medo que descubram quanto conhecimento me falta.
Eu não mereço as minhas conquistas.
Eu sinto que valorizam demais meu sucesso, embora não mereça.
Minhas conquistas foram devido à sorte ou a estar na hora certa, no lugar certo.
Eu procuro validação externa, embora não acredite totalmente quando receba.
Quando me elogiam, eu tenho medo de não atender às expectativas.
Eu tendo a focar no que fiz errado ao invés de considerar os diversos acertos.
Eu acredito que o que faço nunca é suficiente.
Quando li sobre isso, percebi que vários desses sentimentos eu reconheço em mim. Mas a big picture aqui é: por que me sinto uma impostora ao falar de ciência, mas me sinto confiante fazendo divulgação de ciência?
E aí começa minha autoanálise.
A carreira de uma cientista é muito excitante, a gente faz o que ama, vai a campo, coleta dado, analisa dado, se anima quando lê algo interessante e se anima mais ainda quando finalmente consegue publicar nossos resultados, ou quando a gente passa num tão sonhado concurso. Mas tem muita frustração também, como, por exemplo, quando a gente não consegue ir num cruzeiro importante, quando o equipamento quebra bem na hora da sua amostragem, quando um revisor esquece as boas maneiras e te envia uma crítica ríspida e degradante sobre o seu trabalho, quando suas propostas e publicações são rejeitadas, entre vários outros possíveis percalços.
Além disso, a trajetória até o tão sonhado emprego estável é realmente longa e cheia de dúvidas e incertezas. E agora que completo mais de 5 anos nesse tão sonhado emprego de pesquisadora/professora, com quase 40 anos de vida, percebo um misto de emoções difícil de compreender. Por isso, escrevo esse texto, como forma de terapia mesmo. Quem nunca? rsrsrsr
Eu ainda amo o que faço e me sinto realizada em muitos aspectos. Me sinto confortável financeiramente, afinal, nunca sonhei em ser rica. Mas tudo o que faço está sob pressão e sob regulamentação. A cada dois anos eu tenho que fazer um super relatório, dizendo tudo o que fiz e comprovando com documentos cada aula que dei, se fui bem avaliada pelos alunos, cada evento do qual participei ou organizei, cada artigo que publiquei, cada discente que orientei, de quantas comissões participei, se fiz atividades de extensão etc. Enfim, cada passo dado precisa ser registrado e pontuado, literalmente, para que uma comissão analise e decida se estou apta a conseguir aprovação no meu estágio probatório ou um minúsculo aumento no meu salário. Você pode estar pensando que tudo bem, o servidor público precisa ser constantemente avaliado mesmo e eu compreendo isso. Mas esse patrulhamento, entre outras coisas, também traz consequências mais sutis e difíceis de mensurar. Relatarei a seguir algumas das minhas impressões/inseguranças sobre o que é ser uma professora universitária no Brasil:
Se eu não publicar artigos em revistas qualis A (que são aquelas mais bem classificadas) todos os anos serei vista como pouco inteligente, preguiçosa, desorganizada ou até mesmo mal relacionada, incapaz de constituir redes profissionais.
Se eu for uma professora muito rigorosa, seria vista como carrasca, mas se eu for pouco rigorosa, serei vista como alguém que não se importa. Se meus alunos fazem uma má avaliação sobre mim, não importa quais sejam os motivos, serei mal vista pelos coordenadores dos cursos.
Se eu não me envolver com extensão, serei vista como a egocêntrica que não se importa com a sociedade. Mas se me envolvo com extensão, sou vista como aquela que “tem tempo sobrando”.
Se eu não me envolver em 43559584848 atividades burocráticas eu serei vista como uma folgada. Mas se eu me envolver em atividades burocráticas e pisar na bola, não serei perdoada.
Eu percebo claramente que há vários empecilhos para o desenvolvimento de um trabalho pleno nas universidades brasileiras, especialmente uma tão nova como a minha. Por exemplo, a falta de estrutura dos laboratórios, falta de apoio administrativo, capacitações ao trabalho como docente (tendo tempo pra isso), e até mesmo discentes que não receberam um preparo adequado em seu ensino médio etc. Mas mesmo assim, é muito difícil não personalizar os fracassos. Talvez isso seja um reflexo do sentimento de culpa que nossa cultura essencialmente cristã nos deixou de presente. Ou talvez, e mais provávelmente, é que de fato o ambiente acadêmico é muito hostil e recheado de julgamentos. Nós nos julgamos constantemente, da mesma forma que uma influencer fitness faz com que outras mulheres se sintam fora do padrão. Quando comparamos nossos currículos com os de outros colegas, a gente sempre se sente “fora do padrão”. Nessa onda, a gente não apenas se compara, como se agride, ainda que não com palavras, mas com omissão, quando ouvimos comentários excessivamente críticos dirigidos a outros colegas.
Outra reflexão importante, é que essa insegurança, tão comum em cientistas, não se reflete em incompetência ou na falta de habilidades para liderança. A pergunta que interessa é por que nos sentimos inseguras mesmo após anos de treinamento na carreira científica? Possíveis respostas podem incluir a falta de confiança das outras pessoas sobre nosso desempenho. Orientadores, chefes de laboratório e até mesmo colegas frequentemente questionam e testam suas habilidades se você for mulher, verificam nossos cálculos ou nossos programas, não nos atribuem tarefas de maior responsabilidade porque não vamos “dar conta”, assumem que iremos desistir da carreira se quisermos ser mães ou se decidimos nos casar e a lista segue infinitamente.
Por outro lado, no meu mundo da divulgação científica, onde trabalho essencialmente com outras mulheres, percebo que somos mais amáveis umas com as outras e mais compreensivas com eventuais percalços. Em abril de 2021, o Bate-Papo com Netuno completa 6 anos de existência e vejo o quanto trabalhar com essa equipe me fez crescer como pessoa.
Por isso talvez, de forma (in)consciente, tenho colaborado cada vez mais com outras mulheres na área científica também. Quem sabe um dia, quando tivermos mais diversidade nas universidades, possamos ter um ambiente de trabalho mais leve, onde sejamos todos e todas mais gentis, especialmente com nós mesmas.
Para saber mais:
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