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Tempo, produtivismo, inteligência artificial e saúde mental


Ilustração: Caia Colla


Recentemente, um artigo da Nature (uma das revistas científicas de maior repercussão e prestígio na esfera acadêmica) intitulado Cientistas Precisam de Mais Tempo para Pensar chamou a atenção. O que os autores discutiram foi exatamente isso: tempo para gerar os dados, tempo para analisar os dados, tempo para discutir os dados...tempo, tempo, tempo. 


A verdade é que qualquer cientista séria sabe disso. Assim como sabe que não dá para acelerar processos na bancada do laboratório e, muito menos, na hora de processar os resultados. Não é possível apressar a ciência, porque encontrar novos padrões, novas descobertas leva tempo... Eu sempre digo para as minhas orientandas que elas devem reservar um bom espaço no cronograma para "passar tempo de qualidade com os dados". O que quero dizer com isso? Que é necessário "perder tempo" fazendo diferentes gráficos, lendo muitos trabalhos que se relacionam (direta e indiretamente com o tema da pesquisa), conversando com colegas, elaborando hipóteses e as testando, pensando sobre os resultados e escrevendo e reescrevendo, e tendo inclusive tempo de ócio (ócio sempre foi importante no processo criativo). Para no final, a maior parte disso não aparecer na dissertação, tese ou no artigo científico, pois, da forma como são estruturados esses documentos, não "há espaço" para mostrar o passo a passo de tudo que foi feito até o momento EUREKA! 


Aqui vale a reflexão da ironia - ou hipocrisia - que é um texto sobre tempo ser publicado justamente na Nature que é uma das revistas que preza por artigos curtos e cheio de palavras de impactos, sem nem sempre estimar pela qualidade (vide exemplo aqui). 


O fato é que um dos maiores empecilhos para que seja possível "perder tempo" para gerar bons trabalhos é o produtivismo acadêmico. Aqui o termo produtivismo é usado como a prática que se baseia apenas em números de artigos publicados, sem levar em conta a qualidade e/ou o impacto real na vida das pessoas ou qualquer outra atividade desenvolvida pelas cientistas.


E a inteligência artificial (IA), o que tem a ver com isso? Tem tudo a ver! Foi vendida a ideia de que ela veio para tornar nosso trabalho mais fácil, para melhorar sua qualidade e para nos dar mais tempo livre. 


Mas a verdade é que a IA não trouxe "tempo livre",  pois, às pesquisadoras, não é permitido "ter tempo livre" (viva o capitalismo que não permite que o proletariado sequer pense em usar o tempo extra para descanso/lazer), pois ela deve usar "todo e qualquer tempo extra" para produzir mais - e lá vem o produtivismo novamente. Além disso, o uso indiscriminado (e sem conhecimento suficiente das técnicas) da IA contribui para gerar resultados de baixa qualidade e até de procedência duvidosa. E aqui eu deixo o convite para ouvir a Ana de Medeiros Arnt (coordenadora do Blogs Unicamp) no episódio IA Generativa na Educação Ameaça Qualidade e Equidade do podcast CONEXÃO ADUNICAMP. 


Por fim, é impossível falar de tempo, produtivismo e qualidade científica, sem falar de saúde mental. E aqui deixo apenas reflexões: como fica a saúde da pós-graduanda ou da pós-doutoranda  que, além de ser mal remunerada e não ter direitos trabalhistas, é vista apenas como uma “máquina de gerar artigos”? E as comparações entre quem é melhor (neste contexto ser melhor = ter mais artigos)? E a culpa que faz com que as pessoas não se permitam descansar, passar um final de semana sem trabalhar?  


A conta do produtivismo + tempo para gerar trabalhos com qualidade + manter a saúde mental em dia não fecha!E o que podemos fazer para mudar isso? 


 

Sobre a autora:


Foto do perfil da autora. Ela está sorrindo, encostada em uma cadeira. Ela está com o cabelo azul, na altura do ombro.

Formada em oceanologia na FURG com doutorado em oceanografia química pela USP. Entre um trabalho, uma bolsa e um intercâmbio passou também pela Unimonte, UFPR e UFBA, Texas A&M University, Health Department of New York, Heriot-Watt University e da Stockholm University. Atualmente é professora adjunta na UFSC. ​Trabalha com poluição marinha, principalmente contaminantes sintéticos e resíduos sólidos. Mas também atua na geoquímica estudando o ciclo do carbono no ambiente marinho. Desde abril/20 tem se aventurado como mãe do Ian. Não abre mão de cozinhar e experimentar novos sabores, mas não sem antes estudar os processos/química que tornam um prato possível. Também gosta de viajar, ler, fazer trilha e tomar um banho de mar (ou cachoeira). Participa do BPCN desde 2018 como editora. É a chata dos "direitos autorais" e quer que todos usem/produzam material livre com licença creative commons.


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