Por Cláudia Namiki
Ilustração: Joana Ho
Se você aprecia uma boa moqueca, já deve ter comido carne de cação. Ou pelo menos já observou as belas postas de cação à mostra em feiras e peixarias. Mas você sabe o que é o cação?
Cação nada mais é do que o nome dado à carne dos tubarões e das raias (ou arraias) que comemos (Figura 1). Ou seja, quando compramos cação, significa que vamos comer tubarão! Surpreendentemente, a maioria das pessoas não sabe disso, segundo apontou um estudo realizado em Curitiba, onde mais da metade das pessoas afirmaram que comem cação, mas que nunca comeram raia ou tubarão (Bornatowski et al., 2015).
Figura 1: Anúncio das postas de cação comercializadas no CEAGESP em São Paulo. Fonte
O problema é que existem 145 espécies de tubarão e raias no Brasil, dentre as quais 33% estão ameaçadas de extinção. Mas, como qualquer espécie de raia ou tubarão é vendida sob o nome de cação, já em postas (provavelmente para não assustar a freguesia), não há como saber exatamente o que está sendo vendido e, dessa forma, ao consumir o cação, podemos estar contribuindo para a extinção de uma espécie. Considerando que o nosso país ocupa o 11º lugar na produção, e o primeiro lugar na lista de importadores de carne de tubarão do mundo (segundo o relatório da FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations), aqui no Brasil, a nossa chance de contribuir para esse terrível fim se torna bastante elevada (Barreto et al., 2017). O consumo das nadadeiras de tubarão em alguns países da Ásia, onde são consideradas uma iguaria e são vendidas por valores elevados, têm contribuído para o aumento da pesca do tubarão. A retirada das valiosas nadadeiras do tubarão é chamada de “finning” (Figura 2). Normalmente, após o finning, os animais são cruelmente jogados no mar ainda vivos, pois o baixo preço de venda da carne do tubarão não compensa o custo do armazenamento. No entanto, a prática do finning é proibida por lei no Brasil. Então os pescadores armazenam o charuto (nome dado ao corpo do tubarão após a retirada das nadadeiras) para ser vendido a um preço muito baixo, incentivando ainda mais o consumo de cação.
Se a nem a extinção de uma espécie e nem a crueldade do finning comove algumas pessoas, há ainda outros motivos para se evitar comer a carne de tubarão. Um deles é a preservação da nossa própria saúde: como predador de topo os tubarões acumulam grandes quantidades de metais pesados, como mercúrio e chumbo, em um processo chamado de biomagnificação (já falamos desse assunto aqui no blog). Assim, quando a pessoa come o tubarão se torna o próximo consumidor na cadeia alimentar e acumula os metais pesados presentes em sua carne (Alves et al., 2016, Escobar-Sánchez et al., 2011, Lopez et al., 2013). Os metais pesados são extremamente tóxicos para o organismo, principalmente em grandes quantidades, causando diversos problemas de saúde.
O outro motivo é um serviço ecológico: os tubarões controlam o crescimento de populações de diversas espécies, seja por predação direta ou por mantê-las afastadas de determinada área por “medo” de serem devoradas. Grandes tubarões podem se alimentar de outros tubarões, de leões marinhos, de tartarugas e de outros animais da megafauna carismática. Porém, muitas espécies de tubarões se alimentam principalmente de invertebrados, como camarões, siris e caranguejos. Infelizmente até plástico pode fazer parte da dieta do tubarão (Figura 3). Também existe uma espécie filtradora que se alimentam de plâncton, como o tubarão baleia. Recentemente, pesquisadores americanos descobriram que uma espécie de tubarão martelo (Sphyrna tiburo), se alimenta principalmente de gramas marinhas quando jovem. Ainda não se sabe se o jovem tubarão ingere a grama por acidente ao caçar outros animais, ou se ele é realmente capaz de digerir e se alimentar desses vegetais. Essa descoberta pode revelar a existência de interações na cadeia trófica marinha até então ignoradas pelos pesquisadores.
Figura 3: Tubarão tigre (acima) e alguns de seus itens alimentares (abaixo). Modificado de: Currents, The Ocean Foundation. Fonte
Dessa forma, embora tenham criado fama de maus, graças aos filmes da franquia Tubarão e outros filmes trash (na minha humilde opinião), o homem não faz parte da dieta desses animais. Os ataques a seres humanos normalmente ocorrem por engano. Lugares com alta frequência de ataques de tubarão, normalmente estão associados a lugares onde os tubarões costumam se alimentar. Nas praias urbanas de Recife o alto índice de ataques de tubarão se deve a uma série de fatores, entre eles a construção do Porto de Suape, que destruiu o manguezal onde as fêmeas dos tubarões costumavam parir. Sem esse local, os tubarões passaram a frequentar as águas do estuário do rio Jaboatão, que desemboca nas praias, aumentando a frequência de encontro com banhistas e consequentemente elevando o número de ataques.
A pesquisadora Dana Bethea, que dedica sua vida a estudar tubarões e raias, sugere algumas medidas para evitar o ataque de tubarões: evitar nadar ao nascer e ao pôr do sol, pois os tubarões estão mais ativos durante o crepúsculo; evitar nadar em águas com pouca visibilidade, dessa forma o tubarão pode te enxergar melhor e não vai mordê-lo; evitar áreas onde os tubarões se alimentam; não nadar sozinho; e remover as jóias antes de entrar na água, pois o brilho das mesmas pode levar o tubarão a crer que você é um peixe prateado saltitante. E se mesmo assim você continuar com medo, Dana sugere que você não entre na água, pois os tubarões não podem sobreviver em terra firme (rsrsrs).
O fato é que, embora os ataques de tubarões a seres humanos sejam acidentes muito tristes, eles poderiam ser evitados em sua grande maioria e são estes grandes animais que estão sendo atacados por nós, com uma frequência tão elevada que podemos levá-los à extinção rapidamente.
Para saber mais:
https://mundoestranho.abril.com.br/mundo-animal/por-que-ocorrem-tantos-ataques-de-tubarao-em-recife/
http://sero.nmfs.noaa.gov/shark/dana_bethea/index.htmlhttp://www.icmbio.gov.br/cepsul/images/stories/legislacao/Instrucao_normativa/2012/in_inter_mpa_mma_14_2012_normasprocedimentoscapturatubaroes_raias.pdf)
Referências Bibliográficas:
Barreto, R.R., Bornatowski, H., Motta, F.S., Santander-Neto, J., Vianna, G.M.S., Lessa, R.. 2017. Rethinking use and trade of pelagic sharks from Brazil. Marine Policy, 85: 114–122.
Hugo Bornatowski, Raul Rennó Braga, Carolina Kalinowski, Jean Ricardo Simões Vitule. 2015. “Buying a Pig in a Poke”: The Problem of Elasmobranch Meat Consumption in Southern Brazil. Ethnobiology Letters, 6 (1): 196-202.
Luís M.F. Alves, Margarida Nunes, Philippe Marchand, Bruno Le Bizec, Susana Mendes, João P.S. Correia, Marco F.L. Lemos, Sara C. Novais. 2016. Blue sharks (Prionace glauca) as bioindicators of pollution and health in the Atlantic Ocean: Contamination levels and biochemical stress responses. Science of the Total Environment, 563–564: 282–292.
Sebastián A. Lopez, Nicole L. Abarca, Roberto Meléndez C. 2013. Heavy metal concentrations of two highly migratory sharks (Prionace glauca and Isurus oxyrinchus) in the southeastern Pacific waters: comments on public health and conservation. Tropical Conservation Science, 6 (1): 126-137.
Ofelia Escobar-Sánchez, Felipe Galván-Magaña, René Rosíles-Martínez. 2011. Biomagnification of Mercury and Selenium in Blue Shark Prionace glauca from the Pacific Ocean off Mexico. Biol Trace Elem Res 144:550–559. DOI 10.1007/s12011-011-9040-y.
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