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Um contador de histórias chamado otólito e a biologia pesqueira

Por Natasha Travenisk Hoff


Muito além de um contador de tempo, como os otólitos podem auxiliar na biologia pesqueira?



Ilustração: Joana Ho.


No mundo dos peixes ósseos, os otólitos podem ser considerados verdadeiros contadores de histórias: essas estruturas calcificadas, presentes na forma de três pares (sagitta, lapillus e asteriscus) na cabeça dos peixes (Fig. 1) e responsáveis pelo equilíbrio e percepção sonora, crescem em camadas de carbonato e proteína com deposição diária (como se fosse uma cebola, sabe?). Essas estruturas possibilitam que nós, cientistas, façamos inferências sobre seu hábito alimentar, em que tipo de ambiente nasceram, se realizam migrações, entre tantas outras possibilidades. O uso mais comum, e mais conhecido, é em estudos de crescimento de peixes. No post “Como saber a idade de um peixe e outras coisas mais..., a editora do Bate-Papo com Netuno, Claudia Namiki, fala sobre o que são os otólitos e quanta informação carregam essas pequenas estruturas.


Vista lateral do ouvido interno de um peixe teleósteo, incluindo a posição dos três

pares de otólitos (sagitta, asteriscos e lapillus), e sua localização na cabeça.

Ilustração de Natasha Travenisk Hoff, com licença CC-AS-BY 4.0.


Geralmente, quem começa a trabalhar com otólitos inicia seus estudos pela análise de crescimento de seus anéis na graduação ou mestrado, passando para outros tipos de análise mais tarde... Eu comecei meu trabalho com otólitos apenas no doutorado, em 2015, analisando sua forma e composição química aplicadas à oceanografia pesqueira! Era efetivamente tudo novo para mim, o que representou um grande desafio pessoal e profissional! E o mais interessante é que essas estruturinhas sempre me trazem novas curiosidades, aplicações, questionamentos... e isso me faz querer saber cada dia mais sobre elas!


O que trago hoje para vocês foi um capítulo do meu doutorado, publicado recentemente no Journal of Applied Ichthyology, em que buscamos avaliar, através da forma do otólito, a estrutura populacional da tortinha (Isopisthus parvipinnis, uma prima das pescadas que é muito capturada mesmo não sendo uma espécie alvo ou tendo muito valor comercial), desde o litoral norte do estado de São Paulo até Santa Catarina, dividido em cinco sub-regiões, em dois momentos bem distintos: em 1975 e 2018/2019 (Fig. 2). Ou seja, nós queríamos saber se a espécie apresenta diferentes unidades populacionais (ou estoques pesqueiros) e se estes variaram ao longo desses 43 anos, especulando sobre as causas dessas variações.


Mas “qual a importância disso?”, perguntam vocês. Quando falamos de gestão pesqueira, o conhecimento sobre as diferentes unidades populacionais nos auxilia a ordenar a pesca e a avaliar a possibilidade de recuperação de uma espécie diante da exploração muito intensa (sobrexplotação), seja esta espécie alvo ou não da pesca, ou de alterações ambientais naturais ou devido à ação humana. Por exemplo, se a população de uma espécie está restrita à região de Santos, estaria muito mais vulnerável do que se estivesse distribuída por todo o litoral de São Paulo.


Essa é a tortinha (Isopisthus parvipinnis, Sciaenidae) e um mapa contendo os locais onde os indivíduos que analisei foram capturadosem 1975 e 2018/2019 na região costeira dos estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Foto e mapa: Natasha Travenisk Hoff, com licença CC-AS-BY 4.0.


A forma dos otólitos de cada espécie é única (Fig. 3) e, por isso, muito útil em estudos sobre o hábito alimentar de organismos que se alimentam de peixes, mas os fatores que determinam esse formato ainda não foram completamente compreendidos. O que se sabe é que há uma forte componente genética, que determina a forma geral, mas que também há uma variabilidade relacionada ao sexo, idade, dieta, condições ambientais e outros fatores como temperatura da água, profundidade, tipo de substrato (lama, areia, cascalho etc.). Em virtude dessas influências todas, descobriu-se que poderia haver variações nos otólitos de uma mesma espécie, que possibilitariam o reconhecimento e a distinção das unidades populacionais!


Exemplos de diferentes formas de otólitos. Fonte: COSS – Brasil (http://usp.br/cossbrasil/glossario.php), com licença CC-BY 3.0.


E essas variações foram observadas por nós, não só espacialmente, mas também entre os dois períodos estudados. Olha o que a gente encontrou:

  1. Em 1975, as tortinhas formavam uma única unidade populacional. Mesmo vivendo em ambientes com diferentes características oceanográficas, seja sob influência de grandes estuários no sul de São Paulo e no Paraná (Cananéia e Paranaguá, respectivamente), seja em virtude do fenômeno de ressurgência, que atingem o norte de São Paulo e a região de Santa Catarina

  2. Em 2018/2019, uma nova condição foi observada, ocorrendo a formação de quatro unidades populacionais: uma no norte de SP, outra no centro de SP, uma terceira entre o sul de São Paulo e o Paraná, e uma quarta em Santa Catarina.


E quais poderiam ser as causas para tais mudanças? Atribuímos essa diferenciação entre locais e anos aos diferentes ecossistemas e processos oceanográficos encontrados na área de estudo, e às alterações na linha de costa, que alteraram a contribuição das águas dos rios no ambiente costeiro nos últimos 40-50 anos, como podemos ver na Figura 4.



Esquema evolutivo da desembocadura do Rio Guaraú (próximo ao local de coleta em Peruíbe, SP) nos anos 1966, 1973, 1981 (Tessler et al., 2006, disponível em www.mma.gov.br/publicacoes-mma) e 2020 (Google Maps).


Os peixes, assim como todos os seres vivos, são capazes de se adaptar a mudanças ambientais naturais ou induzidas pela ação humana através de modificações na sua fisiologia e comportamento, que não necessariamente estão relacionadas a mudanças genéticas, mas que afetam diretamente a reprodução, morfologia ou sobrevivência. Por esse motivo, é importante ressaltar que nossos resultados não são necessariamente evidências de diferenciação genética.


O uso dos otólitos para a avaliação de estoques pesqueiros no Brasil ainda é incipiente e nenhuma outra espécie brasileira havia sido abordada da forma como fizemos, comparando amostras tão antigas com atuais. Como esta foi uma primeira análise com essa espécie, é importante também que outros métodos sejam testados para dar suporte e/ou contestar os resultados obtidos. Alerta de spoiler: a análise da composição química desses mesmos otólitos apresentou resultados muito similares, mas com mais confiança na distinção das unidades populacionais e ainda distinguiu SC das demais localidades estudadas em 1975.

Por si só, este estudo gera muitos outros questionamentos, tais como:


1. Será que este mesmo processo aconteceu com outras espécies?


2. Podemos verificar algum impacto na pesca, visto que os estoques podem se comportar de diferentes formas frente à pressão pesqueira?


3. Seria já a diminuição da quantidade de tortinhas capturadas recentemente um reflexo deste processo? Poderia ser, uma vez que a espécie ocorre como captura acidental e pouca atenção é dirigida a ela e tantas outras espécies na mesma situação.


4. Sabendo-se que mudanças na zona costeira devido à ação humana podem impactar direta e indiretamente as populações de peixes, o que nós, como sociedade, podemos fazer diante dessas mudanças? Seja um cidadão crítico: busque saber a origem do pescado que consome (por que carnes precisam de selos para serem vendidas enquanto peixes não?); se são espécies ameaçadas; apoie a pesca local; se o esgoto da cidade litorânea que gosta de visitar é tratado ou o condomínio/prédio/casa em que se hospeda à beira mar possui licença...


Enfim, é claro que existem variações naturais ocorrendo no oceano e que poderiam levar a essa distinção de populações, mas temos que ter a consciência da influência que a nossa sociedade exerce (e cada dia mais!) nos diferentes ecossistemas, e nos responsabilizarmos por mudanças que melhorem essas relações entre o ser humano e o ambiente, em especial, o marinho!


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Referências ou sugestão de leitura:


Coleção de Otólitos de Peixes Teleósteos da Região Sudeste-Sul do Brasil (COSS – Brasil). Site: www.usp.br/cossbrasil/


Hoff, N.T., Dias, J.F., Zani-Teixeira, M.L., Correia, A.T. 2020. Spatio-temporal evaluation of the population structure of the bigtooth corvina Isopisthus parvipinnis from Southwest Atlantic Ocean using otolith shape signatures. Journal of Applied Ichthyology, 36: 439-450. doi.org/10.1111/jai.14044


Tessler, M.G., Goya, S.C., Yoshikawa, P.S., Hurtado, S.N. 2006. São Paulo,in Muehe, D. (org.), Erosão e progradação no litoral brasileiro. Brasília: MMA. pp. 297-346. Disponível em: www.mma.gov.br/publicacoes-mma


Vignon, M. 2012. Ontogenetic trajectories of otolith shape during shift in habitat use: Interaction between otolith growth and environment. Journal of Experimental Marine Biology and Ecology, 420-421(2012):26-32. doi:10.1016/j.jembe.2012.03.021


Volpedo, A.V., Vaz-dos-Santos, A.M. 2015. Métodos de estudos com otólitos: princípios e aplicações. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: PIESCE - SPU.


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Sobre a autora:

Apaixonada pelo mar, pela música (tocando ou dançando, já até dei aulas de dança de salão!) e pela família. Sou oceanógrafa formada pela Universidade de São Paulo, e mestre em Ciências (Oceanografia, área de concentração Oceanografia Biológica) pelo Instituto Oceanográfico da USP. Atualmente, encontro-me na fase final do doutorado pelo mesmo instituto (só falta a defesa!), sendo química inorgânica, ecologia de peixes, otólitos, e integridade biótica de comunidades ictiícas as minhas principais linhas de pesquisa.


Contato: tashahoff@gmail.com







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