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Uma sonequinha embaixo d'água: será que os peixes dormem?


É fato que tentamos humanizar quase todos os processos na natureza. Será que podemos fazer o mesmo com o "sono" dos peixes?


 

Você gosta de dormir? É daquelas pessoas que dorme "como uma pedra" ou que acorda com qualquer barulhinho ou luz? Poucas horas de sono são suficientes ou, se o despertador não tocar, o mundo pode acabar, mas você não sai da cama? Para nós, seres humanos, dormir é uma parte essencial da vida! Uma boa noite de sono nos permite ter um dia bacana, de bom humor... Inclusive, para neurocientistas e pesquisadores do sono, mesmo que sem muitas evidências concretas, dormir é um componente vital para os animais e a privação de sono pode ser letal! Mas será que, no oceano, os peixes também dormem como a gente?


Antes de responder esta pergunta, acho importante definirmos o que é "dormir" e quais os processos fisiológicos envolvidos nessa ação. Pois bem, para entender o conceito e comparar com outros termos que podem confundir um pouco as coisas. A primeira distinção que deve ser é entre sono e ritmo circadiano, relacionado à variação nas funções biológicas, que se repete regularmente em ciclos de, aproximadamente, 24 horas. A maioria dos animais precisa ajustar sua atividade às condições ótimas de disponibilidade de presas, ameaça de predadores, oportunidades sexuais, temperatura e outras variáveis que afetam sua sobrevivência e que variam com o período do dia (como exemplo, temos as migrações verticais diárias do zooplâncton descritas aqui). O ato de dormir persiste mesmo em animais que não apresentam ciclo circadiano!


Outros termos que podem ser confundidos são descanso, torpor e hibernação. O primeiro refere-se a um estado de atividade reduzida sem perda de consciência ou redução acentuada da responsividade. O torpor é um mecanismo de economia de energia dos animais, em que reduzem sua taxa metabólica, batimentos cardíacos e, até mesmo, a temperatura corporal por um período menor que 24 horas. Quando esse período de torpor perdura por dias ou semanas, chamamos de hibernação.


Finalmente, então, temos que o sono é definido como um estado de imobilidade rapidamente reversível e de responsividade sensorial bastante reduzida. A tal "vontade" de dormir é influenciada pela regulação circadiana e histórico prévio de sono-vigília. Os osciladores circadianos, como os olhos e a glândula pineal, são acionados por sinais ambientais, comumente ciclos naturais de luz-escuridão, para atuar como marcapassos para o tempo adaptativo do sono e da vigília. Além disso, ele é regulado homeostaticamente, ou seja, o sono perdido é compensado com um aumento na necessidade de sono, dormindo-se mais e mais profundamente. 


Conseguiram perceber as diferenças? Seguimos então...


Em relação aos peixes ósseos - actinopterígios -, a maioria dos estudos foca em espécies não marinhas. Mas algo é unânime: os peixes não têm pálpebras, assim, não podemos esperar que eles fechem os olhos para uma sonequinha, certo!


Um dos peixes mais estudados são os peixes-zebras, que habitam ambientes de águas interiores, como os rios. Eles têm comportamento diurno e não nadam enquanto dormem, permanecendo praticamente imóveis próximos da superfície. Seu ciclo de sono é regido por mecanismos circadianos, com redução e irregularidade nas taxas respiratórias. Em um segundo momento do sono, acontece algo similar a fase do ciclo de sono chamada de REM (do inglês Rapid Eyes Movement = movimento rápido dos olhos), observado nos mamíferos: observa-se atonia muscular, ou seja, a perda temporária do tônus muscular, e aumento na variabilidade da frequência cardíaca, na ausência de movimentos oculares, o que os diferencia dos mamíferos.


Estudos comportamentais realizados com espécies recifais das Bermudas, ilhas britânicas no Oceano Atlântico norte, e de águas interiores mostraram que peixes, como muitas espécies da família Labridae (budiões) e Scaridae (peixes-papagaio), também dormem. Alguns padrões encontrados foram: redução da locomoção e das taxas respiratórias, enterramento em substrato arenoso (onde permanecem inativos até o amanhecer), os organismos são facilmente manuseados sem resposta, entre outros.


Uma curiosidade sobre os budiões é que, algumas espécies, produzem algo como uma “cápsula” composta por muco, dentro da qual permanecem durante a noite. Ou seja, eles produzem algo similar a um saco de dormir! Demais, não é mesmo? Algumas vantagens dessa “cápsula” é que ela oferece proteção contra predadores, mascarando seu cheiro, e funcionando como uma barreira física, que dá tempo para que o peixe adormecido acorde e reaja à invasão.




Registro de budião em sua “cápsula”, realizado pelo Projeto Budiões.


Como os movimentos oculares durante o sono estão relacionados ao sono REM em mamíferos, pássaros e talvez lagartos, algumas observações de movimentos oculares durante períodos de quiescência (inatividade) sustentada em peixes de recife das Bermudas suscitaram a possibilidade de um estado semelhante ao sono REM em peixes ósseos. No entanto, não há novos registros desse comportamento desde 1969, então, não podemos fazer uma afirmação em relação a isso.


Estudos realizados com espécies de mais de 20 famílias de elasmobrânquios (raias e tubarões), apresentaram também algumas evidências de que esses organismos dormem, tais como a organização circadiana, a imobilidade e redução na consciência. Alguns comportamentos semelhantes a dormir já foram registrados em tubarões: espécimes de tubarão-lixa e tubarão-de-Port-Jackson já foram observados descansando em uma caverna rochosa, enquanto tubarões-limão são conhecidos por ficarem imóveis no fundo arenoso por longos períodos de tempo. Já os tubarões-de-pontas-brancas-de-recife, geralmente descansam em grandes congregações intraespecíficas (de tubarões de uma mesma espécie).


Mas nem toda soneca se faz à noite na natureza, sabia? Algumas espécies que vivem associadas à superfície de fundo, como os tubarões-chifre (Heterodontus francisci, oceano Atlântico norte) e o tubarão-gato (Cephaloscyllium ventriosum, oceano Pacífico ocidental), foram observadas dormindo durante a maior parte do dia, seja na natureza ou em cativeiro. Para eles, os comportamentos natatórios e alimentares iniciam-se ao anoitecer.


Infelizmente, há ainda muitas incertezas acerca do comportamento de sono dos actinopterígios e elasmobrânquios, em função da diversidade filogenética, e da dificuldade de registrar a função cerebral na água e reproduzir o habitat desses organismos em cativeiro. Ainda, muitas dúvidas também surgem devido ao fato de muitos estudos não poderem ser reproduzidos, algo que deve ser assegurado em estudos científicos.


Portanto, querido amigo que me enviou a pergunta "peixes dormem?" em uma caixinha de perguntas do Instagram, há indícios de que os peixes, sejam eles actinopterígios ou elasmobrânquios, dormem, sim, só não necessariamente esse processo acontece da mesma forma como acontece conosco!

 

Referências ou sugestão de leitura:


Kelly, M.L.; Collin, S.P.; Hemmi, J.M.; Lesku, J.A. 2019. Evidence for sleep in sharks and rays: behavioural, physiological, and evolutionary considerations. Brain, Behavior and Evolution, 2019(94):37-50. DOI: 10.1159/000504123


Siegel, J.M. 2008. Do all animals sleep? Trends in Neuroscience, 31(4):208-213. DOI: 10.1016/j.tins.2008.02.001 


 

Sobre a autora:

Oceanógrafa, mestre e doutora em Oceanografia, na área de concentração Oceanografia Biológica, pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), com período sanduíche em Portugal, no CIIMAR (Universidade do Porto). Atualmente, é pesquisadora de Pós-Doutorado no IOUSP e editora voluntária do Bate-Papo com Netuno.

A Oceanografia entrou em sua vida muito cedo, quando tinha apenas 12 anos. Desde então, sua curiosidade a leva para novos e diferentes caminhos a cada nova empreitada. Acredita que o diferencial da Oceanografia é justamente a multidisciplinaridade. Assim, tem experiência com análises climatológicas, química inorgânica de sedimentos, unidades de conservação, integridade biótica da ictiofauna, estoques pesqueiros, análises morfométricas, otólitos e, desde 2021, entrou no mundo da paleoecologia!




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