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Alcatrazes e seus peixes...

Por Natasha Hoff

Ilustração de Joana Ho.


Para falar sobre Alcatrazes, preciso falar da minha história com este lugar incrível. Começou em 2011, quando ouvimos sobre o arquipélago numa palestra e decidimos investir em um projeto na região, que seria desenvolvido no contexto de uma disciplina. Acabou que nosso projeto não foi selecionado pela disciplina, mas fomos convidados pelo pessoal da ESEC Tupinambás para executá-lo. Assim, iniciou-se uma parceira, um projeto, um TCC (Trabalho de Conclusão de Curso!), um mestrado e, agora, um doutorado.

Arquipélago dos Alcatrazes, São Sebastião – SP, Brasil.

Muitos termos e nomes desconhecidos? Então, calma porque eu vou explicar. Alcatrazes é um arquipélago, predominantemente rochoso, formado por ilhas, ilhotes, lajes e parcéis. Está localizado no litoral norte de São Paulo, no município de São Sebastião, a aproximadamente 43 km da costa, partindo do Porto de São Sebastião (Fig. 1). Sua ilha principal, maior e mais imponente (visível de pontos mais altos de São Sebastião e Ilhabela), também leva este nome – Ilha de Alcatrazes. E por quê Alcatrazes? Alcatraz é o nome popular de aves muitos abundantes por lá: os Alcatrazes (Fregata magnificens, Fig. 2, esquerda), mas também pode se referir a outra espécie, o Atobá (Sula leucogaster, Fig. 2, direita). E não é a ilha americana onde se tem aquela prisão de segurança máxima! Já recebi perguntas nessa linha...

Espécies de aves muito abundantes no arquipélago dos Alcatrazes: Fragata ou tesourão (Fregata magnificens; esquerda) e Atobá (Sula leucogaster; direita).

O segundo termo que possa ser desconhecido ao leitor é “ESEC Tupinambás”. ESEC é a abreviação de Estação Ecológica, que é um tipo de Unidade de Conservação de proteção integral. Ou seja, o objetivo central de uma ESEC é a preservação da natureza e a pesquisa científica, não sendo permitida a visitação pública. A ESEC Tupinambás foi estabelecida em 1987 e possui dois núcleos (Fig. 3). O primeiro é formado pelas ilhas das Cabras e das Palmas, que também compõem o arquipélago da ilha Anchieta, em Ubatuba. O segundo núcleo é composto por porções do arquipélago dos Alcatrazes, em São Sebastião (para saber mais sobre a ESEC Tupinambás e outras áreas de proteção marinhas, clique aqui). Mas, por que apenas porções? Acho que foi uma primeira tentativa de mostrar o quanto a região é importante, mas não foi muito aproveitada por nós (sociedade civil e órgãos ambientais), visto que até hoje, as pequenas porções protegidas permanecem as mesmas. Mas isso ainda poderá mudar, e mais para frente eu explico isso!

Mapa da ESEC Tupinambás, no litoral norte do Estado de São Paulo. Fonte: ICMBio/ESEC Tupinambás.

Por último, mas não menos importante, temos a área Delta da Marinha do Brasil. Esta é uma área de  710 km2 delimitada em torno do arquipélago destinada a treinamentos militares. Apesar de ser, teoricamente, importante para o Brasil, os treinos de tiro trouxeram grandes impactos à ilha de Alcatrazes, usada como alvo até 2013. Como exemplos dos impactos causados temos a ocorrência de sucessivos incêndios florestais, a supressão de cerca de 12 % da vegetação original para a construção de estruturas de apoio e a introdução do capim-gordura, espécie exótica invasora. Nenhum trabalho foi feito a fim de averiguar os efeitos na biota marinha. Atualmente, em toda a extensão da área Delta é proibido fundear (lançar âncora; ancorar) e pescar. Apesar de não ser este seu objetivo, a área Delta representa a maior zona de exclusão de pesca da zona costeira do Estado de São Paulo.


Tendo isto esclarecido, podemos começar a conversa sobre o trabalho que desenvolvi no meu mestrado.


Ao terminar meu TCC, vi que aquele lugar que tanto me fascina é tão carente de informação que eu poderia continuar a gerar informações úteis e relevantes sobre a área. E foi o que eu fiz... eu tive uma ideia que foi muito bem aprimorada pela minha nova orientadora. Eu estava migrando da oceanografia química para a oceanografia biológica (aí está uma das maravilhas de ser oceanógrafa!), e estar aberta a novas proposta foi fundamental!


A ideia foi avaliar a integridade biótica dos ecossistemas da região do arquipélago dos Alcatrazes utilizando a ictiofauna marinha demersal (também conhecida como comunidade de peixes marinhos associados à superfície de fundo) como indicadora da qualidade ambiental. E todo mundo me pergunta: o que é integridade biótica? Costumo responder que é o quanto aquele ecossistema consegue se manter saudável, íntegro,  apesar das influências externas, como o tráfego de embarcações, atividade portuária, etc.

Os dados que utilizei foram provenientes de três fontes diferentes: 


1. Um trabalho publicado em 1989, pelo Prof. Alfredo M. Paiva Filho (ex-diretor do Instituto Oceanográfico da USP) e colaboradores. Foi muito interessante saber a história deste trabalho e como o instinto de pesquisador já nasce com a gente: a ideia de coletar lá surgiu durante uma travessia entre Ubatuba e Santos, como se fosse um daqueles “clicks” de ideias brilhantes que a gente tem. Foram lá, coletaram, publicaram e este foi o único trabalho utilizando a ictiofauna demersal publicado até então!


2. Em 2011, juntamente com o nosso levantamento abiótico, foi feito uma coleta que auxiliaria na elaboração do Plano de Manejo da ESEC (isso promoveria uma melhor e mais organizada gestão da ESEC).


3. Nova coleta realizada em 2014 para este projeto. Foi a primeira vez do Barco de Pesquisa Alpha Delphini pescando e uma grande experiência para todos nós!


Para avaliar os dados, utilizei dois métodos: o Índice de Integridade Biótica (IIB) e as curvas ABC (Abundance Biomass Comparison). Estes métodos foram estabelecidos na década de 1980, mas ainda são extremamente subutilizados no Brasil. O IIB é baseado em características das comunidades que são consideradas indicadores da saúde do ecossistema. Quais seriam essas características num ecossistema dito saudável? Um maior número de espécies, dentre as quais os indivíduos estejam bem distribuídos; com maior ocorrência de predadores de topo, aqui representados pelos elasmobrânquios, e especialistas em relação à alimentação (piscívoros ou invertívoros, por exemplo). A presença também de um maior número de indivíduos jovens (não aptos a reprodução) pode ser considerada uma característica positiva, indicando que determinado habitat pode estar sendo utilizado como área de alimentação e crescimento dos peixes.


Já as curvas ABC se baseiam nas características das espécies: por exemplo, quando houver influência de fatores estressores, as espécies dominantes serão, de modo geral, aquelas de menor porte, numerosas e com rápido ciclo reprodutivo e ciclo de vida curto, o que chamamos de espécies r-estrategistas. Assim, percebemos uma maior quantidade de organismos com pequena biomassa, portanto, a curva de distribuição de abundância predominaria sob a curva de biomassa num ambiente impactado e vice-versa (Fig. 4).

Curvas ABC: exemplo do comportamento das curvas em ambientes não impactado, impactado e seriamente impactado, respectivamente. Fonte: Warwick (1986).

Registramos 90 espécies de peixes, sendo 12 de elasmobrânquios. Dentre elas, aquelas que ocorreram nos três períodos e estão dentre as mais abundantes foram: Dactylopterus volitans (coió ou voador-de-fundo), Prionotus punctatus (cabrinha) e Pagrus pagrus (pargo; Fig. 5). Essas, juntamente com mais de 30 outras espécies, são apontadas como fauna acompanhante da pesca camaroeira no sudeste brasileiro, podendo ser descartadas, vendidas como mistura ou vendidas separadamente, como a merluza, o peixe-sapo (ou peixe-diabo), cinco espécies de linguado, etc.

Espécies mais abundantes e observadas em 1986, 2011 e 2014: Dactylopterus volitans (coió ou voador-de-fundo), Prionotus punctatus (cabrinha) e Pagrus pagrus (pargo). Crédito: Natasha T. Hoff.

Os principais resultados apontam para um ambiente que, apesar de protegido, vem ainda se recuperando. Em 1986, ainda não havia a área Delta nem ESEC, ou seja, não havia nada que protegesse de alguma forma a ictiofauna da região, com exceção da distância da costa. O ambiente foi classificado como pobre e a curva de abundância predominou sob a de biomassa. O ecossistema tinha baixa riqueza de espécies, uma espécie de elasmobrânquio (grupo formado pelas raias, tubarões e cações) e baixo número de predadores de topo de cadeia (no caso, seriam os organismos piscívoros, que se alimentam prioritariamente de peixes).


Deste momento até 2011, a fiscalização por parte da ESEC era incipiente e, portanto, atribuí à presença da Marinha do Brasil e da área Delta na área à proteção e melhora da qualidade ambiental neste período. Assim, passou-se de uma qualidade ambiental pobre para moderada e as curvas de abundância e biomassa se aproximaram. Muitas espécies mais foram registradas, inclusive de elasmobrânquios, que passou de uma para nove espécies, além de espécies piscívoras, etc.


A partir de 2011, aumentou o contingente e as possibilidades de uma maior efetividade de proteção do arquipélago. Isso, associado à presença da área Delta, garantiu uma melhora ainda maior na qualidade ambiental em 2014, que passou de moderada para boa, mas as curvas de abundância e biomassa permaneceram próximas, indicando que há ainda sinais de estresse na comunidade de peixes.


Dessa forma, foi possível observar que, apesar das limitações dos métodos e dos dados utilizados, os resultados foram relevantes e condizentes com o histórico de proteção ambiental do arquipélago dos Alcatrazes e da ESEC Tupinambás, que ainda precisa de maior proteção efetiva.


Com tão poucas informações sobre o arquipélago, optamos por realizar um grande levantamento bibliográfico e assim mapear o arquipélago, associando essas informações com dados relacionados  à susceptibilidade de cada trecho do arquipélago ao óleo (para prevenção caso ocorra algum derrame de petróleo que atinja a região. E eu espero que isso não aconteça!). Esse mapeamento gera o que chamamos de Carta de Sensibilidade Ambiental ao Derramamento de Óleo, ou simplesmente Carta SAO (Fig. 6). A carta contempla informações sobre a biota, correntes marinhas, localização de sítios arqueológicos, pontos históricos e o ISL (Índice de Sensibilidade do Litoral, que varia conforme a capacidade de penetração e permanência do óleo nos diferentes pontos da região em estudo), entre outras informações relevantes.

Carta de Sensibilidade Ambiental ao derramamento de Óleo (Carta SAO) da região do arquipélago dos Alcatrazes, São Sebastião – SP. Observação: escala não original.

Além do próprio mapeamento, ao realizar a carta, foi apontada uma grande lacuna de conhecimentos sobre fitoplâncton (tema já abordado neste blog) e produtividade primária, espécies de invertebrados marinhos, algas, etc.


Finalmente, quanto à alta biodiversidade que o arquipélago dos Alcatrazes apresenta, espera-se que esta se mantenha protegida pelas restrições de pesca e do tráfego de embarcações na área Delta da Marinha do Brasil, pela existência da Estação Ecológica Tupinambás e pela distância da costa. A pesca demersal, por exemplo, afeta não somente as espécies-alvo, mas aquelas removidas pela captura de pesca acidental (ou bycatch), além de desestruturar os habitat associados à superfície de fundo.


O arquipélago dos Alcatrazes ainda representa um região costeira importantíssima, e ainda muito pouco conhecida. Precisamos compreender suas relações ecológicas, ocupação e uso da área pelos diferentes organismos para, assim, subsidiar sua conservação e manejo.

 

Quer saber mais?


Unidades de Conservação: 


ESEC Tupinambás: 

Leite, K. L. (2014), Gestão e integração de uma Unidade de Conservação Marinha Federal (Estação Ecológica Tupinambás) no contexto regional de gerenciamento costeiro do Estado de São Paulo, Dissertação de mestrado, Escola Nacional de Botânica Tropical, Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.


Minha dissertação: 


Fauna acompanhante e pesca camaroeira:

Graça Lopes, R., A. R. G. Tomás, S. L. S. Tutui, E. S. Rodrigues, & A. Puzzi (2002), Fauna acompanhante da pesca camaroeira no litoral do estado de São Paulo, Brasil, B. Inst. Pesca, São Paulo, 28(2), 173–188.


Sedrez, M. C., J. O. Branco, F. Freitas Júnior, H. S. Monteiro, & E. Barbieri (2013), Ichthyofauna bycatch of sea-bob shrimp (Xiphopenaeus kroyeri) fishing in the town of Porto Belo, SC, Brazil, Biota Neotrop., 13(1), 165–175.


Vianna, M., F. E. S. Costa, & C. N. Ferreira (2004), Length-weight relationship of fish caught as by-catch by shrimp fishery in the southeastern coast of Brazil, B. Inst. Pesca, São Paulo, 30(1), 81–85.

 

Sobre a autora:

Possui graduação em Oceanografia pela Universidade de São Paulo, e mestrado em Ciências (Oceanografia, área de concentração Oceanografia Biológica) pela USP. Atualmente, é doutoranda em Ciências pelo programa de pós-graduação em Oceanografia, área de concentração Oceanografia Biológica, pelo Instituto Oceanográfico da USP. 



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